Resenha Crítica | Tristeza e Alegria (2013)

Tristeza e Alegria | Sorg og glæde

Sorg og glæde, de Nils Malmros

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Cineasta dinamarquês com uma filmografia pouco conhecida (somente o seu quarto longa-metragem, “A Árvore do Conhecimento”, foi exibido em outra edição da Mostra), Nils Malmros segue a linha dos cineastas nórdicos mais consagrados que não poupam o público das tragédias que pretende encenar. Porém, há um fato que torna o seu “Tristeza e Alegria” ainda mais incômodo: a história está diretamente ligada a um episódio trágico e verídico que ainda o atinge.

Logo no início de “Tristeza e Alegria”, uma revelação estarrecedora faz Johannes (Jakob Cedergren, de “Submarino”) desmoronar: sua esposa Signe (Helle Fagralid) matou a filha deles de apenas seis meses atravessando uma faca de cozinha em seu pescoço. A revolta esperada não é externada devido a um sentimento coletivo de complacência: Johannes se vê motivado a defender a esposa enquanto as pessoas próximas à ela estão dispostas a lhe dar todo o apoio possível no processo de recuperação, inclusive ao convencê-la a voltar a atuar como professora em uma escola de ensino infantil.

As coisas passam a ficar mais claras diante das conversas de Johannes com o psicólogo Birkemose (Nicolas Bro), permitindo que a narrativa retroceda para nos contar o início do relacionamento entre ele e Signe, uma jovem que aos poucos apresenta um comportamento autodestrutivo. Alterego de Nils Malmros, Johannes também envereda por uma carreira artística como diretor de cinema e a sua ausência para cumprir cronogramas de filmagens e lidar com a publicidade internacional de suas realizações ampliam a depressão de Signe, que desconfia de infidelidade ao testemunhar a aproximação dele com a atriz de 16 anos Iben (Maja Dybboe).

Ao adotar os flashbacks para ilustrar a história, Nils Malmros acaba inevitavelmente oferecendo um tom episódico à narrativa nem sempre favorável e algumas ações soam desnecessariamente apelativas, como aquela em que Birkemose inconscientemente brinca com uma faca. De qualquer modo, “Tristeza e Alegria” se comporta como mais um testamento inegavelmente tocante sobre o refúgio que muitos encontram na arte para exorcizar os seus próprios tormentos internos. Tendo decretado “Tristeza e Alegria” como o seu último filme, Nils Malmros diz que não há razão para continuar filmando após convencer a sua mulher a compartilhar essa história sobre amor e perdão. Mas seria o cinema, notório por eternizar tudo o que registra, o melhor modo de superar essas dores?

Resenha Crítica | Branco Sai Preto Fica (2014)

Branco Sai Preto Fica

Branco Sai Preto Fica, de Adirley Queirós

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Dirigido por Adirley Queirós, “Branco Sai Preto Fica” consolidou sua reputação diante de um ato político na 47ª edição do Festival de Brasília, que aconteceu ao longo do mês de setembro deste ano. Ao ser anunciado como o melhor filme, houve a decisão unânime (e estabelecida previamente independente do vencedor) de dividir o valor de R$ 250 mil em partes iguais para os demais concorrentes, um meio de quebrar qualquer espírito competitivo que cerca premiações como esta. Lamentavelmente, a representatividade deste ato não corresponde às (des)virtudes de “Branco Sai Preto Fica”.

Ainda interessado na Ceilândia, cidade-satélite de Brasília e um dos principais focos da desigualdade social presente na capital federal do país, Adirley Queirós volta a fundir elementos de documentário e ficção vistos em “A Cidade é Uma Só?” em seu “Branco Sai Preto Fica”. O interesse se mantém em dois homens abatidos por ações de violência e racismo em um baile de black music na periferia. O resultado deixou o primeiro, Marquim, confinado à cadeira de rodas e o segundo, Shockito, com uma perna mecânica.

Ao invés de se limitar em colher depoimentos sobre a vida dessas duas figuras como um documentário convencional, “Branco Sai Preto Fica” dá preferência a uma estrutura experimental ao acompanhá-los em uma trama que envolve até mesmo traços de ficção científica, representados por um personagem vindo do futuro para a investigação de crimes de cunho preconceituoso. Com isso, o interesse pelos personagens se esvai e o resultado de “Branco Sai Preto Fica” se aproxima da catástrofe que é “Dia de Preto“, outra obra nacional que fracassa ao se apropriar de elementos que destoam entre si com a intenção de fazer denúncia.

Resenha Crítica | Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência (2014)

Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência | En duva satt på en gren och funderade på tillvaron

En duva satt på en gren och funderade på tillvaron, de Roy Andersson

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

O cineasta sueco Roy Andersson levou 14 anos para realizar a trilogia intitulada “Sobre Ser Um Ser Humano”. Formada por “Canções do Segundo Andar” (2000), “Vocês, Os Vivos” (2007) e “Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência”, o trio deixa evidente o estilo pouco usual de Andersson em contar e filmar uma história. Um conjunto de esquetes morosas molda as obras citadas, cada uma flagrando comportamentos humanos com um tom melancolicamente cômico.

Ainda que não apresente nenhum progresso diante dos dois títulos anteriores da trilogia, “Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência” conquistou o júri presidido pelo compositor Alexandre Desplat na última edição do Festival de Veneza. A concorrência era forte: “Homem-Pássaro” (de Alejandro González Iñárritu), “The Postman’s White Nights” (de Andrey Konchalovskiy), “Pasolini” (de Abel Ferrara), “The Look of Silence” (de Joshua Oppenheimer), “3 coeurs” (de Benoît Jacquot), entre outros.

Com uma apresentação em blocos que causa a sensação de aleatoriedade, o roteiro traz uma série de personagens diante do marasmo ou do fim da existência. Entre todos, Jonathan (Holger Andersson) e Sam (Nils Westblom) são os que mais ganham realce, dois senhores que vendem artigos de humor com a intenção de trazer um pouco de alegria para a vida de seus clientes. O negócio é um fracasso e a falta de entusiasmo da dupla não colabora nem um pouco.

Embora inegavelmente divertido a princípio, “Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência” imediatamente sucumbe à repetição e ao despreparo de dar maior coesão às pequenas histórias que observa, falhas bem características de Roy Andersson encaradas como virtudes por aqueles que têm um maior apreço pelo seu cinema. A situação de uma professora de dança que tenta seduzir o seu aluno, por exemplo, se alonga até o riso cessar e, assim como em outras esquetes, carece de uma boa resolução. Eis um caso de cineasta que, para o bem ou para o mal, prossegue agradando exclusivamente aos seus fãs sem a preocupação de seduzir novas plateias.

Resenha Crítica | Pássaro Branco na Nevasca (2014)

Pássaro Branco na Nevasca | White Bird in a Blizzard

White Bird in a Blizzard, de Gregg Araki

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Homossexual, Gregg Araki produz um cinema ficcional interessado em relatar os receios que rondam a comunidade LGBT norte-americana. Despontou no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 como um dos cineastas undergrounds mais importantes do circuito independente, criando obras com tom e estética particulares reprisadas exaustivamente em obras posteriores do mesmo segmento. Às vezes lisérgicas, às vezes fantásticas, suas histórias registram com tintas saturadas uma juventude em crise com a própria identidade.

“Pássaro Branco na Nevasca” aborda todos esses temas e a autoria de Gregg Araki é reconhecida em cada frame, conferindo ainda alguns elementos quase estranhos em sua filmografia. O principal deles talvez seja desvendar as máscaras por trás do american way of life ao acompanhar um núcleo familiar, formado pelo casal Eve e Brock Connor (Eva Green e Christopher Meloni) e a filha única Kat (Shailene Woodley), a protagonista de “Pássaro Branco na Nevasca”.

Sempre excelente, Shailene Woodley dá um passo adiante como atriz nesta parceria com Gregg Araki. A estrela não nega fogo ao expor as dúvidas que cercam a adolescente Kat e cenas de nudez e sexo são encaradas sem nenhum pudor. Com um relacionamento distante com a mãe, Kat não se mostra abatida quando ela desaparece sem deixar vestígios. Tudo indica que Eve fugiu com um amante e o fato de Brock ser um banana só reforça a impressão de que ela estava presa a uma vida indesejada de esposa e mãe.

Precisando abrir mão temporariamente da amizade com os seus BFF Mickey e Beth (os divertidos Mark Indelicato e Gabourey Sidibe) e do namoro com o seu vizinho Phil (Shiloh Fernandez) para começar a faculdade em outra cidade, Kat passa a processar que a ausência de uma figura materna em sua vida a atinge mais do que gostaria de reconhecer. Isto fica patente em seus sonhos e durante o seu regresso em um período sem aulas, revendo o seu pai com uma nova companheira (Sheryl Lee) e velhos conhecidos lhe revelando fatos que vão modificar a sua perspectiva diante das coisas.

Ao adaptar o romance de Laura Kasischke (a mesma autora de “The Life Before Her Eyes”, levado ao cinema por Vadim Perelman em “Sem Medo de Morrer“), Gregg Araki nem sempre oferece uma cadência adequada à história diante da mudança de densidade a partir da segunda metade de “Pássaro Branco na Nevasca”. Por outro lado, se sobressai totalmente na direção de elenco, na ambientação conferida a uma década de 1980 embalada por músicas de grupos como “New Order”, “The Psychedelic Furs”, “Depeche Mode”, “Tears for Fears” e “Siouxsie & the Banshees” e com um clímax inegavelmente surpreendente.

Resenha Crítica | O Pequeno Quinquin (2014)

O Pequeno Quinquin | P'tit Quinquin

P’tit Quinquin, de Bruno Dumont

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Persistente na decisão de se envolver com histórias com um alto teor religioso, o francês Bruno Dumont não estava obtendo bons resultados. Excetuando “Fora de Satã” (exibido somente na 35ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo), “O Pecado de Hadewijch” foi um dos piores filmes em seu ano de lançamento e “Camille Claudel, 1915” deverá resistir ao tempo somente pela entrega corajosa de Juliette Binoche ao papel principal. “O Pequeno Quinquin” é a primeira empreitada de Dumont na televisão e a verdade é que a mudança de ares surte um efeito muito positivo em sua carreira, agora composta por oito títulos como diretor.

Dividido em quatro episódios, “O Pequeno Quinquin” foi apresentado como uma minissérie na França. As exibições garantiram uma audiência acima do esperado para o canal ARTE e as críticas foram bem entusiasmadas. Com as probabilidades muito baixas de um dia chegar ao Brasil, a Mostra fez muito bem em apresentar uma versão em longa-metragem de “O Pequeno Quinquin”. Os episódios se converteram em capítulos e, felizmente, o material não foi condensado para ser exibido na tela grande. Contendo quase três horas e meia de duração, “O Pequeno Quinquin” deverá ser assistido com aquela empolgação de um espectador de tevê que devora uma temporada de seu seriado favorito sem interrupções ao mesmo tempo em que se vê diante de um produto com qualidade cinematográfica.

Bem equilibrado, “O Pequeno Quinquin” faz uma mistura quase infalível entre humor e suspense. Interpretado pelo excelente Alane Delhaye, o personagem-título é um garotinho que aplica várias prendas como uma forma de abater o marasmo de se viver em uma cidade do interior. As coisas vão começar a ficar agitadas com uma série de assassinatos que ronda o local. Capitão da polícia com tiques faciais, Van der Weyden (Bernard Pruvost) e o seu parceiro Carpentier (Philippe Jore) estarão à frente das investigações.

O tom de escracho é muito forte nos primeiros momentos de “O Pequeno Quinquin”, incluindo partes dos corpos das vítimas sendo encontrados dentro de vacas e um velório que abusa sem cerimônia do humor negro. Ter um grupo de crianças testemunhando tudo de perto tornam as coisas mais engraçadas. Mas eis que a densidade se manifesta quando comprovamos que todos os personagens são isentos de pureza, inclusive Quinquin, que não perde uma chance de praticar o bullying contra os seus vizinhos negros e árabes.

Exaltar “O Pequeno Quinquin” como um “Twin Peaks” francês é inevitável. Assim como a produção televisiva criada por David Lynch e Mark Frost, Dumont criou tipos estranhos e dissimulados e os concentrou em uma cidadezinha que parece controlada por forças sobrenaturais. Porém, ao invés de uma red room que pode ser adentrada em um ponto específico de uma floresta, “O Pequeno Quinquin” tem o palco do primeiro assassinato envolto a uma atmosfera perturbadora, uma caverna com suásticas pichadas.

Com um capítulo derradeiro que volta a exibir o fascínio de Bruno Dumont por elementos religiosos, “O Pequeno Quinquin” também sugere que há um enraizamento muito forte da sociedade contemporânea em seu histórico mais desonroso de preconceitos e tragédias, como se vê através do comportamento violento injustificável contra os agentes em potencial de uma miscigenação. Eis o mal em essência cumprindo de modo exemplar a função de culpado pelos crimes que moldam “O Pequeno Quinquin”.

Resenha Crítica | Rua Secreta (2013)

Rua Secreta | Shuiyin jie

Shuiyin jie, de Vivian Qu

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Às vezes não há nada melhor do que um mistério que permita que o público possa ficar no mesmo escuro que o seu protagonista. A imersão em uma espiral de caminhos mal traçados abre inúmeras possibilidades e resta ao roteiro determinar as melhores decisões. Em sua estreia na direção de longa-metragem com um roteiro de sua própria autoria, a chinesa Vivian Qu parece definitivamente perdida em suas próprias ambições.

“Rua Secreta” inicia de modo descompromissado ao apresentar o jovem Qiuming (Yulai Lu) se engraçando com Lifen (Wenchao He), uma garota que o atraiu pela beleza e delicadeza singulares. Trainee em uma companhia que lida com mapas digitais, Qiuming aproveita um dia chuvoso para oferecer para Lifen uma carona. Ao chegar ao seu destino, ela acidentalmente deixa para trás um estojo com um pen drive que, para não transformar “Rua Secreta” em um curta-metragem, Qiuming não acessa, utilizando-o como pretexto para reencontrá-la.

O que era para ser um romance ganha ares de thriller quando o protagonista contata Lifen através do número impresso no dispositivo removível. Trata-se do contato da empresa em que ela trabalha, situada em uma rua que misteriosamente não consta no sistema de mapeamento que opera diariamente. Incapaz de impor uma atmosfera absorvente ou de orquestrar uma tensão crescente, “Rua Secreta” passa a acompanhar cada passo de Qiuming como se outros o perseguissem, sem responder a qualquer uma de suas questões mal formuladas sobre da possibilidade de termos a nossa privacidade monitorada por entidades com propósitos pouco claros.

Resenha Crítica | 15 Anos + 1 Dia (2013)

15 Anos + 1 Dia | 15 años y un día

15 años y un día, de Gracia Querejeta

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Em um determinado momento de “15 Anos + 1 Dia”, Margo (personagem vivida por Maribel Verdú), diz compreender muito bem o seu filho Jon (Arón Piper), o protagonista da história. Entre os inúmeros elogios, proferidos com muita convicção por Margo, há o destaque a uma postura firme que ele sustenta diante de injustiças. É claro que não há comentário mais suspeito do que de uma mãe sobre o seu filho, mas a discrepância entre o que Margo diz e quem Jon é soa no mínimo risível.

Misteriosamente indicado em sete categorias do Goya e representante da Espanha do ano passado para disputar uma vaga no Oscar em Melhor Filme Estrangeiro, essa obra dirigida e roteirizada por Gracia Querejeta acompanha Jon no exato momento em que ele é expulso da escola em que estuda. Margo acredita que a melhor saída para o seu filho e mandá-lo para a casa de seu avô Max (Tito Valverde), militar aposentado e dono de uma rigidez que deverá fazer bem ao garoto.

Ainda que esteja longe dos melhores amigos, Jon consegue se enturmar rapidamente. Elsa (Sfía Mohamed) é a que tem iniciativa em iniciar uma amizade e há até uma gangue de maus elementos liderada por Nelson (Pau Poch) interessada em contar com ele. Jon só não se dá muito bem com Toni (Boris Cucalón), um rapaz supostamente homossexual com a mesma idade que ele “contratado” por Max para lhe dar aulas particulares.

Nos primeiros minutos de “15 Anos + 1 Dia”, Jon até parece um adolescente comum com todas as dúvidas e anseios esperados. No entanto, não leva muito tempo para chegarmos à conclusão de que estamos diante de um personagem insuportável e mimado. Gracia Querejeta se esforça, mas é impossível criar qualquer empatia por um garoto mal educado, irresponsável, entediante e que jamais corresponde ao carinho com o qual é tratado pela sua família. Conferir à narrativa uma reviravolta em forma de tragédia só piora a reputação de Jon e, consequentemente, do filme.

Resenha Crítica | Livre (2014)

Livre | Wild

Wild, de Jean-Marc Vallée

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Quem já encarou uma trilha, seja ela breve ou longa, conhece a experiência que ela propicia. Mais do que o contato raro com a natureza em um momento em que acompanhamos a urbanização dos ambientes que nos cercam, há também a introspecção. Encaramos a caminhada que fazemos para atingir o destino almejado como um desafio, como um silêncio para dialogarmos com mais liberdade com o nosso próprio interior.

É muito evidente que foi exatamente por isso que Cheryl Strayed deixou tudo temporariamente para trás ao enfrentar uma trilha de aproximadamente 1.770 quilômetros pela Pacific Crest Trail, totalizando mais de três meses de isolamento. Também é claro que Cheryl acumulou muitos pensamentos e acontecimentos para partilhar, o que resultou em “Livre – A Jornada de Uma Mulher Em Busca do Recomeço”, livro já publicado no Brasil com o selo da editora Objetiva. Dirigido por Jean-Marc Vallée após “Clube de Compras Dallas“, “Livre” expande a força da história de Cheryl permitindo que sintamos sua exaustão não somente física, mas também emocional.

O recomeço também acontece para Reese Witherspoon. Excelente atriz, Reese se perdeu totalmente ao definir as suas escolhas profissionais tendo como peso uma estatueta do Oscar obtida com o seu trabalho em “Johnny & June”, drama musical produzido há quase dez anos. Excetuando o bom trabalho como coadjuvante em “Amor Bandido”, o brilho obtido a partir de sua participação em “Eleição” tinha se apagado. Sem artificialismo e vaidade ao interpretar Cheryl, Reese Witherspoon merece voltar ao circuito de premiações.

Na primeira cena de “Livre”, nos deparamos com uma Cheryl no meio de sua jornada e diante de uma situação que pode fazê-la abrir mão de tudo. A seguir, os fragmentos que Martin Pensa e o próprio Jean-Marc Vallée organizam buscam decifrar paulatinamente esta jovem, evidentemente atingida por uma perda drástica que a fez assumir uma série de impulsos inadequados.

Entre cada percalço da trilha, Cheryl rememora um passado presente marcado pela relação com a mãe (a extraordinária Laura Dern, uma atriz que faz valer cada segundo em que aparece), os desentendimentos com o ex-marido (Thomas Sadoski), uma infância de violência com o pai (Jason Newell) e o vício por drogas pesadas em uma fase longa de desolação. Tudo apresentado com uma sintonia pouco vista em narrativas que se arriscam em estabelecer dois tempos para sincronizá-los.

Evitando o erro visto em filmes similares como “Na Natureza Selvagem”, em que o protagonista é involuntariamente reduzido com o realce exacerbado conferido aos personagens secundários, “Livre” se mantém concentrado totalmente em Cheryl, o que garante força à aventura que ela mergulha. Há também o trabalho musical, com canções selecionadas a dedo pelo roteirista Nick Hornby (britânico mais conhecido como o autor dos livros “Alta Fidelidade” e “Um Grande Garoto”) para embalar os passos de Cheryl, firmes o suficiente para tornar palpáveis as novas possibilidades com o fim de um percurso existencial.

Resenha Crítica | Inseguro (2014)

Inseguro | Qui vive

Qui vive, de Marianne Tardieu

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Em seu primeiro longa-metragem, a diretora Marianne Tardieu lida com um tema que certamente repercute de modo imediato diante do público: o enfado de exercer uma profissão indesejada e a difícil transição de carreira. No entanto, a também roteirista Marianne Tardieu, em parceria com Nadine Lamari, busca cercar de tensão a insatisfação do protagonista de “Inseguro”, atingindo resultados nem sempre plausíveis.

Ótimo ator que vem conquistando rapidamente o seu espaço no cinema, Reda Kateb (que estreou em “O Profeta” e visto no ano passado nas primeiras cenas de “A Hora Mais Escura“) vive Chérif Arezki, segurança de uma loja que dá para um estacionamento extenso que tem o objetivo de trabalhar na área de enfermagem. O fato de ter trinta e poucos anos o faz temer sobre as possibilidades de sucesso, especialmente por ser filho de pais imigrantes e por não aguentar mais as pressões do trabalho vindas com as perturbações de um grupo de jovens baderneiros.

As coisas não vão bem para Chérif e, consequentemente, para o filme quando ele decide arquitetar um plano que dará fim aos garotos que o denigrem, uma solução que o colocará em apuros. Sem personalidade, a condução da inexperiente Marianne Tardieu compromete a nossa cumplicidade com as ações de Chérif, causando uma indiferença que contamina “Inseguro”, atingindo até mesmo a esfuziante Adèle Exarchopoulos, inexpressiva em seu primeiro papel após o sucesso estrondoso de “Azul é a Cor Mais Quente“.

Resenha Crítica | As Maravilhas (2014)

As Maravilhas | Le meraviglie

Le meraviglie, de Alice Rohrwacher

.:: 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

A italiana Alice Rohrwacher parece desinteressada em seguir a mesma carreira de sua irmã famosa, Alba Rohrwacher. Com 32 anos de idade, Alice não tem um histórico como atriz e com “As Maravilhas”, o seu segundo longa-metragem como diretora, garantiu alguns louros, como uma indicação à Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Grande Prêmio do Júri na mesma premiação – quem esteve por lá, afirma que o filme foi ovacionado durante 10 minutos.

Gelsomina (papel da graciosa Maria Alexandra Lungu) é a protagonista de “As Maravilhas” e a filha mais velha de Wolfgang (Sam Louwyck) e Angelica (Alba Rohrwacher, quem mais?), casal habituado com a vida rural. Apicultor, Wolfgang tenta passar a tradição para a família, delegando à Gelsomina a tarefa de se responsabilizar pelas suas três irmãs mais novas tanto na hora de brincar quanto na de trabalhar. A rotina pacata da família vai sofrer uma alteração drástica no fim do verão com o interesse das meninas em participar de um concurso televisivo em que a apresentadora Milly Catena (Monica Bellucci) elegerá a futura rainha de um reino imaginário.

Como o esperado, “As Maravilhas” segue a mesma estrutura das histórias que tratam de uma família comum abatida por um evento extraordinário. Aqui, é a figura paterna que bate o pé diante da chance de participação em algo bobo e tão importante para as suas filhas, uma constatação que o fará ceder uma hora ou outra. Diante desse processo, a também roteirista Alice Rohrwacher discute todas os valores familiares já esperados, como a importância de se manter fiel às raízes. Só é um pouco mais que “bonitinho, mas ordinário” porque as crianças são notáveis e por existir alguma representatividade muito forte e íntima nos takes finais.