Resenha Crítica | Coração Sangrento (2015)

Bleeding Heart, de Diane Bell

Embora esteja em um relacionamento de muita cumplicidade com Dex (Edi Gathegi) e tenha uma mãe adotiva, Martha (Kate Burton), que a criou com muito amor, há um vazio em May (Jessica Biel) ao qual parece incapaz de suprir. A razão é a sua mãe biológica, que sequer conheceu. Os laços familiares deverão ser atados com mais firmeza quando May se apresentar à Shiva (Zosia Mamet), que tudo indica ser a irmã que até então desconhecia.

Shiva não é diferente de May somente na idade (é 10 anos mais jovem), mas em todos os demais aspectos. Enquanto May, uma instrutora de ioga, é exemplarmente organizada e pacífica, Shiva é instável e refém de um namorado, Cody (Joe Anderson), que a submete à atividades obscuras. Ainda assim, há em May aquele instinto protetor natural em irmãs mais velhas, recusando-se a recuar diante das ameaças de Cody contra Shiva.

Em seu segundo longa-metragem, Diane Bell acertou ao confiar o papel de May à Jessica Biel, que recentemente vem descartando os papéis de interesse romântico para privilegiar uma verve mais densa. A atriz torna crível a saída de sua personagem na redoma em que vive para resgatar a irmã que mal atou laços afetivos e cujas verdadeiras intenções desconhece.  Há assim o espaço para uma fragilidade que dita a fuga de um perigo que a princípio se vê incapaz de enfrentar.

Também há virtudes no texto de “Coração Sangrento” na sugestão de que May também está enclausurada em uma vida na qual a voz masculina é quem assume a liderança de suas ações. Ainda que Dex seja um homem de boa índole, a sua insistência em impedir que May saia dos trilhos de um cotidiano milimetricamente planejado para priorizar Shiva indica que ela nunca teve um poder individual de decisão.

Por tudo isso, não há como não lamentar que “Coração Sangrento” chegue ao seu terceiro ato perdendo toda a sua credibilidade, desfazendo-se de um drama até então muito bem resolvido para apostar na ambiguidade de Shiva e enveredar para um conceito feminista sobre as reações extremas para derrubar uma ameaça masculina. No desejo em elevar as intenções então seguras de seu argumento, Diane Bell as resolve com um tom quase caricatural incompreensível.

Resenha Crítica | Hush: A Morte Ouve (2016)

Hush, de Mike Flanagan

Mesmo não sendo um bom filme – e provavelmente por lidar com um mistério originalmente encenado para um curta e que ressurge sem fôlego para um filme com mais de uma hora e meia -, “O Espelho”  garantiu a Mike Flanagan um olhar mais atento ao seu inegável talento como diretor, pois não faltam momentos bem conduzidos pelo americano de 37 anos nessa produção de 2013. Antes de lançar “O Sono da Morte”, Flanagan tinha escondido debaixo da manga “Hush: A Morte Ouve”, um lançamento exclusivo da Netflix.

A realização é uma síntese do que há de melhor em uma produção com recursos mínimos, mas amparada por uma criatividade somente possível no campo do terror. Com apenas dois protagonistas, três personagens secundários, um cenário e uma duração de 80 minutos, Flanagan ainda assina um roteiro em que a maior parte de seu texto não é verbalizado. Explica-se a razão: Kate Siegel, também corroteirista, interpreta Maddie, uma mulher surda e muda.

Escritora de um único best seller, Maddie deve a sua deficiência a um trauma que lhe acometeu ainda jovem, sendo totalmente dependente de ferramentas tecnológicas para tornar possível a sua vida a só em uma residência afastada da cidade grande. Com o fim de um relacionamento, ela tem como principal ombro amigo a sua vizinha Sarah (Samantha Sloyan), que se esforça em aprender a linguagem de sinais para ter uma aproximação mais íntima com Maddie.

Após o breve encontro, um sujeito mascarado surge na propriedade de Maddie para cometer um crime. Interpretado pelo versátil John Gallagher Jr. (que pode ser visto em “Rua Cloverfield, 10”), esse psicopata estranha o fato dela estar alheia ao seu ato brutal, logo compreendendo a falta de funcionalidade de dois dos seus sentidos.  Por isso mesmo, vê Maddie alguém perfeito para fazer um jogo de gato e rato, testando os seus limites até que ela ceda.

Há 21 anos, Anthony Waller fez “Testemunha Muda”, um filme delicioso em que a atriz Marina Zudina interpreta uma personagem em uma situação semelhante a de Kate Siegel em “Hush: A Morte Ouve”. Porém, o progresso de sua narrativa investia em um tom de humor, muito bem-vindo ao contexto trabalhado: os bastidores da produção de um slasher movie. Flanagan, por outro lado, enfatiza o horror a partir de uma violência cada vez mais brutal que não poupa a sua protagonista.

A escolha funciona porque ela carregam uma perspicácia e um drama que progridem em paralelo. Ainda que não possa ouvir os passos de seu algoz ou clamar por socorro, Maddie raciocina como se dentro de um processo criativo para ver as saídas para a sua obra literária, desenhando mentalmente a decisão mais favorável para chegar ao fim da história como uma sobrevivente. Por outro lado, a figura do maníaco soa também como a materialização de seus medos mais íntimos, relacionando a chance em derrotá-lo como a superação do que a fragiliza. Se essas linhas de interpretação não o interessam, “Hush: A Morte Ouve” ainda assim não deixa de ser um ótimo home invasion.

Resenha Crítica | Ninguém Deseja a Noite (2015)

Nobody Wants the Night, de Isabel Coixet

Filha de uma alemã com um oficial militar americano, Josephine Diebitsch Peary veio a descobrir a vocação pela exploração de locais inóspitos ao se casar com Robert Edwin Peary aos 25 anos. As contribuições conjuntas em expedições valeram-lhe o título de Dama do Ártico, ainda mais comum com a vinda de Marie, filha que deu à luz no Polo Norte. Trata-se de uma figura real que buscou não viver à sombra de seu marido, recebendo em “Ninguém Deseja a Noite” o papel de protagonista.

Interpretada por Juliette Binoche, Josephine não é compreendida pela cineasta Isabel Coixet e o roteirista Miguel Barros como uma heroína, entretanto. Qualquer tom de aventura que a premissa poderia corresponder é limado para exibir o drama de uma Josephine no ápice da fragilidade, clamando por seu Robert ao ponto em ir a sua procura com toda a instabilidade de uma paisagem marcada pelo branco da nevasca.

Incapaz de traçar o trajeto por si própria, Josephine convence Bram Trevor (Gabriel Byrne) a liderar uma viagem com esquimós, estes sempre encarados pelos estrangeiros como meros mapas ambulantes com habilidades para a caça e o transporte de bens. Feroz quando contrariada, Josephine parece distante da realidade que passa a rodeá-la, desejando a todo custo reencontrar o amado como a protagonista de uma fábula, inclusive carregando consigo um guarda-roupa com peças luxuosas.

Se o primeiro ato acompanhamos uma mulher fútil que ignora os riscos que pode pagar para saciar o seu capricho, “Ninguém Deseja a Noite” caminha em direção oposta a de “A Rainha do Deserto”, de Werner Herzog, que reduziu a grande Gertrude Bell em uma moça ingênua guiada por lamúrias amorosas ao invés da curiosidade em conhecer a amplitude do mundo. Isso porque a versão ficcional de Josephine passará a ter a presença da esquimó Allaka (Rinko Kikuchi) para colocar em perspectiva o seu vazio emocional.

Essa transição de intenções talvez seja a razão de “Ninguém Deseja a Noite” ter sido severamente criticado em sua première no Festival de Berlim. No entanto, é ela a responsável por engrandecê-lo. O romance com molduras épicas e a aventura antropológica dão vez a visão de Isabel Coixet sobre o que é a mulher em seu sentido mais primitivo. Unidas por algo em comum, Josephine e Allaka se transformam com a vinda de um inverno rigoroso, devastando tudo que as protegem até restar os instintos maternais e de sobrevivência. Ao decifrar a natureza de suas personagens com tanta intensidade, Coixet volta a provar o quão especial (e subestimada) é diante de seus colegas contemporâneas.