Você Nunca Esteve Realmente Aqui

Resenha Crítica | Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017)

You Were Never Really Here, de Lynne Ramsay

Mesmo quando surgiu em 1998 com “O Lixo e o Sonho” e apresentou “Morvern Callar” quatro anos depois, a diretora escocesa Lynne Ramsay já encontrava uma certa dificuldade para ser uma completa unanimidade. Tal recepção é mais do que bem-vinda para cineastas que sonham com a divisão das opiniões como recurso para o debate.

A armadilha dessa corda bamba é justamente o extremismo que lhe é natural. Houve quem amou e odiou com a mesma intensidade “Precisamos Falar Sobre o Kevin“, adaptação controversa e sem meias palavras do best seller homônimo de Lionel Shriver. Encontrar aqueles que consigam estabelecer um equilíbrio entre dois sentimentos tão opostos também será uma tarefa difícil diante do seu novo “Você Nunca Esteve Realmente Aqui”.

Se a sua leitura chegou até aqui, definitivamente não terá uma breve impressão positiva sobre essa adaptação do romance de Jonathan Ames, ainda não publicado no Brasil. Já no Festival de Cannes do ano passado, a resposta foi diferente: em versão que a própria Ramsay definiu como inacabada, “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” ainda assim rendeu para si um prêmio de Melhor Roteiro e para Joaquin Phoenix o de Melhor Ator.

A premissa surrada do anônimo errante que parece encontrar um caminho de redenção ao executar um trabalho sujo é revista por Ramsay com todas as pretensões do chamado cinema de arte. Assim, enche de floreios os passos de Joe (Phoenix), um assassino de aluguel cuja existência só parece importar para a mãe inválida (interpretada por Judith Roberts).

O desenvolvimento de “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” é tão presunçoso que a sensação provocada é a de completo desprezo de Ramsay pelo material que tem em mãos. O efeito é compatível com o de uma paródia que se propusesse a sacanear com os méritos de obras cinematográficas de respeito.

O porte bear de Joaquin Phoenix potencializa a impressão de uma fera pronta para atacar, mas que dentro de si conserva um bom coração, fazendo-o manusear desde as gomas comestíveis de seu mandante (uma cena patética, por sinal) ao martelo que usa como ferramenta para destroçar crânios.

Essas chantagens emocionais que Ramsay tenta camuflar com frieza só corroboram não somente para uma indiferença com esse protagonista, mas também com todas as intervenções externas que buscam humanizá-lo a partir da missão de resgatar a filha (Ekaterina Samsonov) de uma figura política, sequestrada para servir ao tráfico sexual.

Se isso tudo ainda não te convencer, não se preocupe. “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” está infestado de flashbacks de infância abusiva para clamar por empatia para o velho Joe. Até papo mole com capenga prestes a morrer está presente na cartela de bingo manipulador de Ramsay.

O Animal Cordial

Resenha Crítica | O Animal Cordial (2017)

O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida

Com vasto currículo como roteirista, Gabriela Amaral Almeida contabiliza também vivências atrás das câmeras no formato de curtas-metragens. Fascinada por histórias obscuras, flertou com as perturbações psicológicas e o terror propriamente dito de sua estreia em “Náufragos” (2010) até “Estátua!” (2014), este premiado no Festival de Brasília.

A primeira experiência como realizadora de um longa-metragem enfim chega com “O Animal Cordial”, aqui contando com o aval de Rodrigo Teixeira, o produtor brasileiro do momento. É onde finalmente assume o perigo e a violência de modo mais frontal, tingindo algumas cenas com um banho de sangue pouco habitual de se testemunhar em nosso cinema.

Após um primeiro ato em que estabelece um cenário, os seus personagens e um contexto para mantê-los unidos, Gabriela Amaral Almeida, que também assina o roteiro, se compromete com um ponto de virada arriscado para tecer um comentário interessante. Trata-se das divergências que acontecem quando representantes de grupos sociais tão distintos se veem enclausurados em uma espécie de limbo.

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Entrevista com Murilo Benício e Gabriela Amaral Almeida sobre “O Animal Cordial”

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Assim, uma tentativa de assalto liderada pelo personagem de Humberto Carrão logo testa as posições hierárquicas de comportamentos que simulamos em circunstâncias do cotidiano. Como a vulnerabilidade que Verônica (Camila Morgado, confirmando que é uma de nossas mais preciosas atrizes) demonstra minutos após Sara (Luciana Paes, em merecido papel de protagonista após “Sinfonia da Necrópole“), a garçonete do restaurante que serve de palco para “O Animal Cordial”, já não mais estar na função de subordinada.

Automaticamente, Inácio (Murilo Benício), o proprietário do estabelecimento, também envereda para outras posturas mais extremas, reflexo de um homem que é cordial com os seus clientes ao passo em que tem atritos com a cozinha liderada por Djair (Irandhir Santos), que há semanas se queixa de expedientes estendidos de trabalho.

É um contexto excelente para executar uma narrativa de horror e Gabriela Amaral Almeida o faz com uma sofisticação singular, da coordenação do elenco à misé en scene, da atmosfera envolvente que estabelece ao domínio de aspectos técnicos complexos, como os efeitos práticos.

Porém, talvez pelo costume em orquestrar breves histórias, é preciso apontar que há descompassos, da inconstância de Sara aos encontros privados que esta tem com Inácio, regadas de um impacto visual que a certa altura não concatenam com o todo.

De qualquer modo, é uma baita estreia e que amplia as expectativas quanto ao segundo trabalho da realizadora em longa-metragem: “A Sombra do Pai”, com première confirmada para o Festival de Brasília e lançamento comercial planejado para 2019.

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“O Animal Cordial”: entrevista com Iradhir Santos, Luciana Paes e Humberto Carrão

Megatubarão

Resenha Crítica | Megatubarão (2018)

The Meg, de Jon Turteltaub

Jason Statham + um tubarão digital com mais de 20 metros de comprimento. Às vezes um projeto tem a fórmula perfeita para proporcionar o que não se vê com muita frequência no cinema americano, sendo a bobagem tipo b que não tem vergonha de se assumir como tal.

É exatamente o que se espera de “Megatubarão”, mas eis que as expectativas não batem. Lembra muito o que aconteceu há 12 anos com “Serpentes a Bordo”, com a oferta de produto por um grande estúdio com espírito trash que, na prática, está longe de chutar o pau da barraca.

Na realidade, “Megatubarão” é muito mais um resultado estranho de uma constatação cada vez mais evidente: a da China como salvadora dos blockbusters hollywoodianos. Aqui, um time conhecido pelos americanos assume os cargos principais do filme, como a direção, roteiro e elenco, enquanto os chineses se encarregam de inserir alguns de seus astros a bordo em papéis secundários e também de viabilizar grande porcentagem dos gastos da produção.

Portanto, o herói Jonas Taylor (Statham) será visto abandonando temporariamente a aposentadoria forçada como capitão naval para uma missão de risco: o resgate de sua ex-mulher Lori (Jessica McNamee) e outros dois colegas, Toshi (Masi Oka) e o Muralha (Ólafur Darri Ólafsson), nas profundezas do Oceano Pacífico após serem atacados por algo a princípio desconhecido.

Para o desdobramento desse e de outros incidentes que rolarão, o protagonista dividirá a cena com Suyin (Bingbing Li), mãe solteira de Meiying (Sophia Cai) que prova que há muito já não vive mais à sombra de seu pai Zhang (Winston Chao). A união entre potências cinematográficas se efetiva. Já no restante, “Megatubarão” deixa a desejar.

O primeiro erro do trio de roteiristas é a base em um livro de terror com tom sério, escrito em 1997 por Steve Alten. O segundo é que o diretor Jon Turteltaub é desses cujos maiores êxitos curriculares foram os projetos que conduziu para a Disney como mero diretor de aluguel, quase há 30 anos trabalhando sem ter se envolvido em nada que visualizamos uma assinatura autoral.

Por isso, “Megatubarão” não é eficaz como filme de terror, de ação e muito menos de comédia. Com censura PG-13 (14 anos no Brasil), o sangue que se tem é o de vísceras de iscas – no clímax, que tanto prometia, a água fica cristalina mesmo com muitos corpos aparentemente destroçados. A adrenalina é zero. E a graça se resume a estereotipação de personagens secundários, do negro falastrão de Page Kennedy ao bilionário de Rainn Wilson que prioriza lucros ao invés de vidas humanas. Melhor ficar com o crocodilo imbatível de “Pânico no Lago”.

O Desmonte do Monte + O Caso do Homem Errado

Resenha Crítica | O Desmonte do Monte + O Caso do Homem Errado (2018/2017)

O Desmonte do Monte, de Sinai Sganzerla
O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes

Lançados em sessões vizinhas no CineSesc no último fim de semana, “O Desmonte do Monte” e “O Caso do Homem Errado” revelam uma semelhança além de serem documentários. Ambos são dirigidos por mulheres estreantes no ofício, respectivamente Sinai Sganzerla e Camila de Moraes, e trazem temas específicos para reforçar a importância de não esquecermos de histórias trágicas e de injustiça.

No caso de “O Desmonte do Monte”, temos como personagem de interesse um local, o Morro do Castelo. Situado no Rio de Janeiro, foi um endereço de grande estima para os colonizadores, com as gerações seguintes fortalecendo as suas importâncias históricas e arquitetônicas.

Já “O Caso do Homem Errado” versa sobre algo menos coletivo, dando luz à uma figura real anônima. Neste caso, Júlio César de Melo Pinto, homem humilde e inocente que foi executado pela polícia de Porto Alegre sob circunstâncias no mínimo questionáveis. Não fosse os registros do repórter fotográfico Ronaldo Bernardi, o crime estaria sem resolução: Júlio César foi algemado intacto para minutos depois ser retirado da viatura morto e com balas espalhadas por todo o corpo.

A realização de Sinai Sganzerla conta na maior parte do tempo com a narração de sua mãe Helena Ignez para pontuar os episódios essenciais de um local que teve o seu fim decretado por um evento terrível e de responsabilidade política ocorrido há quase um século. De imagens, há somente fotografias, gravuras e pinturas daquele ambiente e todas as suas transformações.

Assim sendo, ainda que exista um trabalho sonoro que busca dar vida às imagens estáticas, “O Desmonte do Monte” quase nada tem de cinematográfico. Ao contrário, é didático, quase como uma aula enfadonha de história toda aplicada a partir de uma apresentação em slide.

Pior é “O Caso do Homem Errado”, organizado quase como um documentário universitário. Camila de Moraes acerta ao enfatizar que o crime cometido contra Júlio César é um sintoma de um estigma racista das autoridades contra a comunidade negra (algo tão bem abordado no também recente “Auto de Resistência“), mas esquece de construir uma narrativa.

Amparado por depoimentos quase em sua totalidade, “O Caso do Homem Errado” só apresenta algo mais concreto sobre Júlio César nos minutos finais, como as fotografias pertencentes ao arquivo pessoal de seu cônjuge ou mesmo os passos refeitos entre o local de sua captura e aquele em que estava o verdadeiro alvo da polícia.

Canastra Suja

Resenha Crítica | Canastra Suja (2016)

Canastra Suja, de Caio Sóh

No baralho, o canastra suja é a mão formado por uma sequência finalizada com um curinga. Mesmo quem nada entende de jogos de azar, compreenderá o termo durante a costura de Caio Sóh para o seu quarto longa-metragem. Como faz questão de ilustrar, é um jogo de cartas o que encena, em que os componentes de uma família se movem em um tabuleiro de dissimulações, interpretações equivocadas dos fatos e golpes do acaso.

Cabeça da família, Batista (Marco Ricca) trabalha como manobrista em um hotel de luxo e tem sérios problemas com alcoolismo. Parece o pivô de todas as crises que se abatem em sua esposa Maria (Adriana Esteves), nas filhas Emilia (Bianca Bin) e Rita (Cacá Ottoni) e, principalmente, no filho Pedro (Pedro Nercessian). Ainda que o prólogo flagre a tentativa de Batista em se reabilitar, o que se vê paulatinamente adiante é um castelo de cartas desabando.

No desenrolar da narrativa, Caio Sóh acompanha de modo nu e cru os segredos e mentiras que sustentam cada componente da família, do plano de Emilia em firmar um relacionamento com o seu chefe e o de trazer a sua irmã autista consigo até os subterfúgios que Maria recorre para enfrentar a barra dos embates entre Batista e Pedro.

Quase tudo em planos contínuos, nos quais Sóh permite uma dinâmica em que resulta em desempenhos viscerais de todo o elenco central. Algo nem sempre recorrente no cinema nacional, hoje tão dedicado a preencher com filtros uma realidade ou a conflitá-la com o formato híbrido do fato com a ficção.

É um dos grandes destaques da produção brasileira, chegando ao circuito comercial com dois anos de atraso e reacendendo com o seu fracasso o problema da exibição em um mercado dominado pela concorrência estrangeira. O senão vem apenas na forma de um personagem secundário, em que o acúmulo dos conflitos é centralizado com pouca verosimilhança.

Barreiras

Resenha Crítica | Barreiras (2017)

Barrage, de Laura Schroeder

Se Isabelle Huppert é considerada a Meryl Streep da França, Lolita Chammah poderia ser comparada com Mamie Gummer. Mãe e filha já trabalharam juntas algumas vezes antes de surgir na tela algo mais efetivo no belo “Copacabana“, em que também dividem na ficção o mesmo parentesco da vida real.

Em “Barreiras”, Isabelle Huppert decidiu ser mais generosa com a sua cria, não se importando muito em servir de degrau para o protagonismo de Lolita Chammah. Portanto, não se deixe levar pela publicidade brasileira: somada toda a sua participação, Huppert não deve ter mais que 10 minutos em cena em um filme que quase encosta nas duas horas.

É importante citar a relação familiar porque “Barreiras” trata sobre três gerações femininas de um núcleo em frangalhos. Na “coluna intermediária”, há Catherine (Lolita Chammah). Cantora há 10 anos ininterruptos na estrada, ela deixou a sua filha Alba (Themis Pauwels, de “Suíte Francesa”) aos cuidados da mãe Elisabeth (Isabelle Huppert).

Pois ela decide regressar para Luxemburgo e o reencontro claramente não será fácil. Além daquele sensação de intrusão de uma moça que ficou tanto tempo sem prestar satisfações, Elisabeth não é uma pessoa das mais estáveis e impõe um momento privado com Alba sem avaliar que a menina está toda preenchida de ressentimentos.

Em seu segundo longa-metragem, Laura Schroeder tem como seu braço direito a britânica Petra Jean Phillipson, que assina uma trilha musical que exerce um papel dramático essencial para a narrativa. “Barreiras” é também bem fotografado por Hélène Louvart, apresentando uma textura de lodo verde em imagens emolduradas quase como retratos de Polaroid.

Falta um texto mais consistente, ao qual coassina com a veterana Marie Nimier. Raros picos emocionais, como o que Alba se machuca ou que é uma culpada direta pela morte do cachorro de Catherine, a única criatura pela qual estabeleceu algum vínculo realmente duradouro, são rapidamente resolvidos para resgatar o processo de redescoberta entre ambas. Indolor.

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Lançamento em streaming de “Barreiras”:
Disponível a partir do dia 26 de julho
iTunes: R$ 19,90 (venda) | R$ 11,90 (aluguel)
Google Play: R$ 29,90 (venda) | R$ 9,90 (aluguel)
Now: R$ 14,90 (aluguel)
Vivo Play: R$ 11,90 (aluguel)

A Noite Devorou o Mundo

Resenha Crítica | A Noite Devorou o Mundo (2018)

La nuit a dévoré le monde, de Dominique Rocher

.:: Festival Varilux de Cinema Francês 2018 ::.

Curioso como o terror, talvez o mais subvalorizado gênero cinematográfico, tem experimentado agora o momento mais complexo de sua existência, no qual o termo pós-terror surgiu somente para no dia seguinte ser severamente criticado por sua inadequação para classificar todo um movimento.

Como nunca, anda rendendo os exemplares mais lucrativos no circuito comercial e volta a ganhar a atenção das premiações, como se viu nos últimos dois anos acontecendo com “A Bruxa” e “Corra!“. É a velha matemática de apavorar a partir de comentários sociais, estes por vezes roubando dos sustos e da violência o protagonismo.

O francês “A Noite Devorou o Mundo” não teve visibilidade o suficiente para ser título mencionado nesse extenso debate, mas é um expoente de uma tradição ainda mantida: o filme de zumbi. Tão brilhante quanto o britânico “Melanie: A Última Esperança” (lançado ano passado no Brasil em streaming), essa adaptação do romance de Pit Agarmen também dialoga com questões de sobrevivência em um contexto pós-apocalíptico.

No entanto, o filme o estreante Dominique Rocher é mais intimista, quase um testamento contra o indivíduo que insiste em sua característica antissocial em um mundo com mais de sete bilhões de seres humanos. Isso porque Sam (Anders Danielsen Lie, protagonista dos primeiros filmes de Joachim Trier) tem o seu estado de solidão testado a partir do instante em que desperta em uma Paris tomada por zumbis velozes e famintos.

Em enxutíssimos 93 minutos que causam o peso oportuno de horas a fio, “A Noite Devorou o Mundo” é basicamente constituído com as possibilidades limitadas de Sam ao transformar em lar um edifício quase deserto. Foi o local que esteve na noite anterior ao caos, visitando a ex-namorada Fanny (Sigrid Bouaziz) durante uma festa para recolher as suas fitas K7.

A eliminação a tiro dos moradores zumbificados, o recolhimento de suprimentos, a limpeza do sangue e as interações com um inquilino também transformado e preso em um elevador (uma participação impagável do camaleônico Denis Lavant) são as atividades que preenchem a nova vida de Sam. Mas até quando tolerar essa dinâmica?

Fosse americano, “A Noite Devorou o Mundo” seria rapidamente convertido em filme de ação ao estilo “Eu Sou a Lenda”. Como bom exemplar europeu, encontra no banal o seu combustível de entretenimento, indo até o fim com a sua proposta radical de não ofertar caminhos e resoluções fáceis para um protagonista que preserva o seu instinto de sobrevivência em uma realidade na qual vai a cada dia perdendo as razões para existir.

Custódia

Resenha Crítica | Custódia (2017)

Jusqu’à la garde, de Xavier Legrand

.:: 41ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

.:: Festival Varilux de Cinema Francês 2018 ::.

Produzido em 2013, “Avant que de tout perdre” exibia a desestruturação de uma família, na qual uma mulher e seus dois filhos temiam as ações impulsivas do marido e pai. No ano seguinte, essa história recebeu uma indicação ao Oscar e a vitória no César na categoria de Melhor Curta-Metragem de Ficção.

Agora, o diretor e roteirista Xavier Legrand, que outrora tentou seguir a carreira de ator sem sucesso, retoma a situação e os seus dois protagonistas, Léa Drucker e Denis Ménochet, para encorpar o argumento em “Custódia”. A aclamação se repetiu, desta vez com duas vitórias importantes no último Festival de Veneza (inclusive na categoria de Melhor Direção) e o prêmio da crítica na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, nesta considerado por muitos espectadores como o filme de terror da sua 41ª edição.

Em tempos em que o abuso contra a mulher tem sido uma pauta central de discussão na sociedade, “Custódia” é lançado em um momento oportuno, ainda mais por flagrar o crime dentro do contexto doméstico, talvez o mais ignorado pelas portas que terceiros fecham e trancam como medida para não intervir em crises que acontecem no vizinho na casa do vizinho.

Na realidade, Miriam Besson (papel de Léa Drucker) já tentou dar um basta na situação, efetivando a separação com Antoine (Ménochet). A questão é que, ao contrário da filha mais velha Joséphine (Mathilde Auneveux), Julien (Thomas Gioria) é ainda um pré-adolescente e a justiça de termina que a sua guarda deve ser cedida quinzenalmente ao seu pai.

Como roteirista, é evidente algumas extensões nem sempre bem ajambradas de Xavier Legrand com base em seu curta, como a cerimônia com a qual encena a suspeita de gravidez de Joséphine. Já como diretor, a sua condução é, sem exageros, digna de veterano alçado a gênio.

Isso se dá porque Legrand sabe como sugerir o que se deu ao longo da vida dos Besson, conduzindo um elenco que carrega em olhares e retrações um histórico de violência que dispensa o uso de artificialismos como uma confirmação, a exemplo de flashbacks. Porém, são nas inevitáveis explosões de desequilíbrio que “Custódia” nos torna cúmplices absolutos, culminando em um terceiro ato que se revela um verdadeiro pesadelo imersivo.

Ana e Vitória

Resenha Crítica | Ana e Vitória (2018)

Ana e Vitória, de Matheus Souza

As amigas Ana Caetano e Vitória Falcão formam aquele raro modelo de união entre talento e sorte que reverberou em sucesso. Além de se distanciarem do protótipo de jovens artistas moldadas por empresários gananciosos, a dupla de Araguaína traçou uma vida universitária sem ligação com o universo musical, com Ana cursando medicina e Vitória, direito.

Foram descobertas por Felipe Simas através de vídeos descompromissados em que cantavam sucessos de grandes amigos. Quatro anos após a produção de um EP, o agora duo Anavitória separa seu nome para recontar, com muitas intervenções ficcionais, um pouco dessa trajetória em três capítulos.

O brasiliense Matheus Souza é muito interessado na juventude, como demonstrou em “Apenas o Fim” e “Eu Não Faço a Menor Ideia do Que Eu Tô Fazendo Com a Minha Vida”, sendo abordado para tocar a história de Anavitória. Faz o que entrega o pôster: uma comédia romântica musical sobre relacionamentos modernos.

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+ Entrevista com Ana Caetano e Vitória Falcão sobre o filme “Ana e Vitoria”

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Conta pontos o fato de “Ana e Vitória” ser uma produção independente, desviando daquela coisa com cara televisiva parecida com o que vimos no início do ano com “Gaby Estrella: O Filme“. Deixar as meninas mais a vontade para serem quem são ao invés de exigirem que interpretem versões de si mesmas também contribui para maior empatia.

Há ainda um interesse por um ponto de partida que descarta as convenções da cinebiografia com maior interesse em compreender a dinâmica que dita hoje os amores e desilusões entre os jovens. No contexto contemporâneo de Ana e Vitória (e nosso), a rotulação da sexualidade não importa e os relacionamentos abertos não parecem ser a resposta ideal contra os monogâmicos.

Faltou um acabamento mais consistente. A música é secundária em “Ana e Vitória” e vai se tornando cada vez mais deslocada com o progresso da narrativa. A primeira parte, focada no reencontro entre as amigas depois do ensino fundamental em uma festa no Rio de Janeiro, poderia ter uma fotografia mais cuidada.

Por fim, a longa duração de duas horas pouco faz para o desenvolvimento dos personagens secundários, em sua maioria caricatos. É difícil tolerar, por exemplo, Cecília (Clarissa Müller), que faz exigências egoístas mesmo na noite em que a sua namorada Ana está para mudar de vida. Conhecido também por sua cobertura em cinema, Bryan Ruffo vem como uma exceção ao interpretar o melhor amigo de Vitória, em exposição franca das fragilidades masculinas.