
Além de uma carreira dedicada à direção e roteiro de curtas-metragens e videoclipes, Morgan Simon também já havia se desafiado no formato de longa-metragem em 2016 com “Compte tes blessures”, onde uniu forças no texto com Julia Ducournau para contar a história de um jovem músico de 24 anos que entra em graves atritos com o seu pai assim que este anuncia o relacionamento com uma nova mulher.
Já em “Entre Nós, O Amor”, é a figura materna que entra em colisão com o seu filho, embora o olhar seja um pouco mais acolhedor diante dos revezes da vida. Isso se dá sobretudo porque a relação explorada entre os protagonistas vividos por Valeria Bruni Tedeschi e Félix Lefebvre reserva algumas semelhanças com episódios vividos pelo próprio Morgan com a sua mãe.
Um dos convidados da primeira edição do Festival de Cinema Europeu Imovision, Morgan Simon concedeu entrevista para o Cine Resenhas para revelar um pouco sobre o que há de ficcional e o que há de autêntico em seu drama, além de refletir sobre uma sociedade com políticas que raramente priorizam o bem estar de indivíduos que entraram na fase de envelhecimento – além de mãe solteira, Valeria também é uma mulher com 50 anos há meses sem um emprego.
A entrevista pode ser vista tanto em vídeo (não se esqueça de ativar as legendas a partir da engrenagem) quanto em texto.
Morgan, minha primeira pergunta para você é que mesmo que o seu filme comece com o relacionamento complicado entre uma mãe e o seu filho pós-adolescente, senti que ele também trata sobre um medo que muitas pessoas têm, de serem vistas como velhas demais para o mercado de trabalho e não tendo uma estabilidade, como aposentadoria. Aqui, isso se intensifica com o contexto político — como na cena em que a personagem principal se dirige ao Emmanuel Macron pela TV. Você pode comentar sobre essa parte do filme, esse aspecto político?
Acho que no filme há muitas questões políticas. Quando você é uma pessoa de 50 anos, especialmente uma mulher, você já não se vê mais considerada pela sociedade, pelo mercado de trabalho. É muito difícil encontrar um emprego. E, ao mesmo tempo, você sabe que tem que trabalhar até os 60, 65 anos. Então você tem mais 10, 15 anos para trabalhar… mas nem agora consegue um trabalho. Então qual será o seu futuro? Porque você não consegue um emprego agora e, em 10 anos, como vai viver? Como terá dinheiro? E, ao mesmo tempo, você se sente mal no seu próprio corpo. Acho que dá a sensação de que sua vida acabou. Se você tem 50 anos e não tem nenhuma esperança, nenhum tipo de perspectiva… No filme, acho que a personagem da Valeria sente que o filho não a ama mais, que está farto dela. Então tudo está indo muito mal na vida dela. E acho que o filme fala justamente sobre isso: reencontrar a esperança, reencontrar a si mesma, reencontrar a felicidade. O que é felicidade também, dentro da sociedade? E isso chega na vida dela quando encontra alguém capaz de olhá-la de verdade, como ela é, e dar a ela um novo começo. E sim, o aspecto político também envolve essa questão do desemprego, etc. Mas também é filmar duas mulheres vivendo uma relação em um bairro que, digamos assim, não é um bairro muito bom. E também existe um certo tabu em ter esse tipo de relação nessa idade, mulheres com mais de 50 anos, se descobrindo, se tocando, descobrindo o corpo uma da outra. Isso é algo que a gente quase não vê. Talvez por ser um tabu. Mas se é tabu, então é sinal de que devemos falar sobre isso. E eu pensei que também seria importante dar voz à vida dessa mulher, que é um modelo, como uma forma de dar mais coragem, mais confiança, como uma homenagem a esse tipo de personagem. E especialmente porque é um pouco como a minha mãe.
Falando da sua mãe, você dedicou o filme a ela, e como você é o único roteirista do longa, é difícil não pensar em quanto de autobiográfico há no filme. Mesmo que não seja apresentado dessa forma, até que ponto a ficção se inspira na realidade?
Acho que pode ser uns 50%. Achei muito importante ser tão preciso, porque algumas das coisas pelas quais passamos poderiam parecer irreais, mas aconteceram de verdade. E eu queria ter certeza de que, ao fazer esse filme, eu estava realmente retratando a realidade. Foi por isso que quis fazer o filme, porque não vemos esse tipo de acontecimento retratado no cinema. E claro, criar ficção também é uma necessidade — um alívio, tanto para mim quanto para o público. Nem tudo é completamente verdadeiro, e mesmo que fosse, não seria tão interessante. Não se trata apenas da vida do diretor — isso não importa. O que importa é o que isso representa na sociedade. E começar a partir da minha própria vida foi a forma que encontrei de garantir que o que eu estava contando era forte o suficiente, que era algo em que se pode acreditar.

Tenho uma pergunta sobre o elenco. Félix Lefebvre e Valeria Bruni Tedeschi já atuaram juntos em “Verão de 85”, em que ele interpretava o papel principal e ela era a mãe do melhor amigo dele, se não me engano. Foi a partir desse filme que você começou a imaginá-los como Nicole e o Serge?
Na verdade, eu tinha esquecido completamente que eles já haviam atuado juntos! Eu simplesmente adoro o trabalho da Valeria — ela é uma atriz brilhante, talvez uma das melhores da França, na minha opinião, e também da Itália. E quando fizemos o processo de seleção, o Félix foi simplesmente o melhor ator, a melhor pessoa possível. E só depois de algumas semanas me dei conta de que eles já tinham trabalhado juntos. Mas era algo muito diferente. Aliás, o François Ozon teve um certo envolvimento, ele chegou a me dar comentários sobre a edição, graças ao Félix, que mandou o filme pra ele. Então houve uma conexão desde o início.
Fico feliz em saber disso. Ozon é um dos meus diretores favoritos, mas ele nunca veio ao Brasil promover os filmes, mesmo lançando um por ano por aqui. Este ano, por exemplo, tivemos “Quando Chega a Primavera”. E minha última pergunta: como alguém que é muito próximo da mãe, fiquei verdadeiramente comovido com o final do seu filme. Naquele momento captado em close-up com a Valeria. Você também se emociona no set, ou fica mais focado nos detalhes técnicos por trás do monitor?
Na maior parte do tempo, mantenho certa distância de tudo. Mas me lembro de dois momentos. Um é quando a Valeria, durante o Natal, diz ao filho todas as coisas lindas que sente por ele — como “você vai ser alguém”, “vai ter sucesso na vida”. Que é quase como dizer: “você vai conseguir aquilo que eu não consegui”. Esse momento me tocou profundamente, ainda fico emocionado ao lembrar. E o outro momento foi o final do filme, que foi também o último dia de filmagem. Eu gosto de filmar na ordem cronológica sempre que possível. E a cena final do filme foi a última que gravamos, em um lugar que costumo frequentar com a minha mãe, o único lugar que ainda está presente em nossas vidas hoje. Esse lugar ainda existe, e nós vamos até lá. Minha mãe estava presente no dia da filmagem. Na verdade, ela aparece em uma das cenas, ela atravessa o enquadramento. Foi muito engraçado, porque minha mãe sempre usa um boné. E ela queria usar o boné durante a gravação. E eu disse: “Mãe, não dá. A Valeria também está de boné. Você não pode ficar na frente dela usando boné. Não dá!” Então, no fim, ela disse: “Ok, vou tirar o boné.” E foi muito emocionante, porque ela estava assistindo à cena entre mãe e filho na tela, enquanto os atores estavam ali, atuando no mesmo restaurante onde costumávamos nos sentar de verdade. Foi algo muito, muito próximo da realidade. Fiquei bastante comovido. E também porque era o final da filmagem e lá fora havia uma tempestade. Parecia que até a natureza estava participando. Então, nesses dois momentos, sim, me emocionei. Mas no restante do tempo, consegui manter uma certa distância, para deixar as coisas acontecerem, sem dizer aos atores: “Não, quero esse momento assim, então atue desse jeito.” Nunca faço isso. Prefiro apresentar a situação e, a partir dela, a gente inventa, cria, muda. Não tenho ego com o texto, o importante é o que parece certo naquele momento.
Perfeito, Morgan. Foi um prazer conversar com você. Obrigado novamente pelo seu tempo.
Muito obrigado. Valeu!
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