Mare Nostrum

Resenha Crítica | Mare Nostrum (2018)

Mare Nostrum, de Ricardo Elias

Hoje o Brasil passa por aquela que talvez seja uma de suas maiores crises econômicas, prestes a bater a casa dos 14 milhões de desempregados. Isso sem dizer os mais de 30 milhões que vivem da informalidade e os 62 milhões com nome sujo. Na ficção “Mare Nostrum”, Ricardo Elias estabelece como presente o ano de 2011 como se fosse o início da gestação de um caos que encontra o seu ápice agora em 2018.

Jornalista esportivo, Roberto (Silvio Guindane, que retoma parceria com o diretor após os 15 anos do longa “De Passagem”) encurtou a sua estadia na Espanha por falta de oportunidades profissionais. Volta ao Brasil sem um tostão no bolso e solicitando abrigo para a mãe (Teka Romualdo) enquanto tenta emplacar a publicação de uma biografia sobre um jogador de futebol injustiçado.

Paralelamente, também acompanhamos os passos de Mitsuo (Ricardo Oshiro). Sem sorte no Japão, pede habitação na casa da irmã (Maya Hasegawa), onde gerencia a peixaria da família sem obter lucros. São personagens que colidem quando discutem sobre uma propriedade na Praia Grande negociada em 1984 por seus pais.

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Entrevista com o diretor Ricardo Elias e o ator Silvio Guindane sobre “Mare Nostrum”

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O advogado de Roberto, Orestes (Carlos Meceni, ótimo), avalia o terreno em 120 mil reais, o que seria suficiente ao menos para lidar com as dívidas que contraiu ao suspender o pagamento da escola em que estuda a sua filha (interpretada Lívia Santos), mas Mitsuo exige receber 20 mil para assinar a papelada e resolver toda a burocracia. É a quantia que precisa para se reinventar como designer gráfico.

A produção brasileira vem em excelente timing, mas o texto de Ricardo Elias, também assinado por Claudio Yosida e Enéas Carlos, envereda por um realismo fantástico que reduz o potencial das discussões. Talvez o período controverso que atravessamos peça por programas mais leves, mas usar a mágica para driblar entraves não convencerá os mais céticos da plateia.

O Poder de Diane

Resenha Crítica | O Poder de Diane (2017)

Diane a les épaules, de Fabien Gorgeart

.:: Festival Varilux de Cinema Francês 2018 ::.

Os costumes femininos sofreram um upgrade com o avanço das gerações e hoje a mulher deixou de ser automaticamente associada à maternidade a partir da exposição de outras ambições, como a igualdade de gênero nas esferas profissionais e privadas. Diane (Clotilde Hesme) não é uma feminista autodeclarada, mas é autossuficiente e não tem planos em se tornar mãe.

Para tanto, parece a princípio totalmente alheia no papel de barriga de aluguel para Thomas (Thomas Suire) e Jacques (Grégory Montel), melhores amigos que têm o sonho de formar uma família. A constatação de que está grávida só se dá a princípio quando relembra que precisa interromper o vício do cigarro para o bem da saúde do bebê que carrega.

O surgimento do eletricista Fabrizio (Fabrizio Rongione, constante colaborador dos irmãos Dardenne) em sua vida, no entanto, a faz colocar as coisas em perspectiva quando o que julgava ser somente um lance casual se transforma em relacionamento sério. A Diane debochada, que é capaz de encarar como mera trivialidade até mesmo o ombro que se desloca toda a vez que faz um esforço físico extremo, vai sedendo espaço para uma versão mais realista.

O estreante em longa-metragem Fabien Gorgeart é marido de Clotilde Hesme e construiu “O Poder de Diane” no período em que ela realmente estava grávida. Não é a primeira vez que alguém faz isso no cinema, mas é raro um diretor e a sua protagonista estarem diretamente ligados a uma gestação que se dá diante das câmeras.

Desenvolver um texto diante de algo que de fato se dá diante dos nossos olhos abre portas para muitas irregularidades, mas Clotilde contorna qualquer deslize principalmente quando os sentimentos que está verdadeiramente experimentando validam a sua Diane como uma figura palpável mesmo em suas excentricidades. O choro prolongado que toma os minutos finais de “O Poder de Diane” serão os mais verdadeiros que você testemunhará em qualquer ficção deste último ano.

Marcha Cega

Resenha Crítica | Marcha Cega (2018)

Marcha Cega, de Gabriel Di Giacomo

Há três meses, a cineasta Natasha Neri, em parceria com o seu marido e diretor de fotografia Lula Carvalho, lançou o documentário “Auto de Resistência” causando grandes estrondos na opinião pública. Desde a sua première no festival É Tudo Verdade deste ano, materiais promocionais e redes sociais da produção têm sido alvos de ataques de civis que se posicionam favoráveis à truculência policial, ela subindo os índices de homicídios de inocentes de modo gritante.

Mesmo com intensidade mais branda, é certo que Gabriel Di Giacomo também se reconheceu mexendo em vespeiro ao relembrar a perigosa ação policial que chegou a roubar o protagonismo dos protestos que tomaram as ruas em 2013 a partir do aumento da passagem do transporte público. Vem assim em boa hora o seu documentário “Marcha Cega”, este tendo a sua primeira exibição nacional no Cine-PE.

Como toda narrativa precisa de uma perspectiva para que todas as suas pontas sejam atadas ao final, “Marcha Cega” encontra na figura do fotógrafo Sérgio Silva o seu potencial protagonista. Enquanto fazia uma cobertura fotográfica das manifestações paulistanas, foi ferido gratuitamente por um policial militar. A consequência foi a perda integral da visão em um de seus olhos.

São vários depoentes que compartilham os episódios traumáticos que viveram em um passado extremamente recente, de mulheres assediadas por agentes até um grupo de jovens que foi preso com a justificativa de que portava materiais danosos para usar nos protestos. Além delas, Di Giacomo também convida figuras públicas para enriquecer o debate, como o ex-senador Eduardo Suplicy e Luiz Eduardo Soares, antropólogo e autor de “Elite de Tropa”.

Além de expor o cenário aterrador de mobilizações que se iniciaram pacíficas, “Marcha Cega” é também informativo principalmente ao compartilhar os procedimentos e como todos são quebrados na contenção das massas. Com as tensões da polarização das eleições ainda em curso, vem mais um registro que lamentavelmente será reprisado com ainda mais gravidade nos próximos tempos obscuros que nos aguardam.

+ Entrevista com Gabriel Di Giacomo, diretor do documentário “Marcha Cega”

Um Pequeno Favor

Resenha Crítica | Um Pequeno Favor (2018)

A Simple Favor, de Paul Feig

Como livro, “Um Pequeno Favor”, da estreante Darcey Bell, parece um neo noir bem influenciado por todos os thrillers citados pelas personagens ao longo da narrativa, de um Hitchcock como “Pacto Sinistro” até a obra-prima francesa de Henri-Georges Clouzot “As Diabólicas” – ainda que o desenrolar esteja mais para um “Diabolique”, a refilmagem americana. Como cinema, “Um Pequeno Favor” mais parece uma comédia debochada, algo esperado da assinatura de Paul Feig.

É possível transformar em algo colorido um material que em sua origem é quase todo obscuro? Pois a resposta é sim, como aponto em minha análise feita com exclusividade para a seção Literatura & Cinema, no canal do Cine Resenhas no YouTube. Ela está disponível no vídeo a seguir.

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Um Pequeno Favor

Darcey Bell (Tradução: Ana Carolina Mesquita)

Bertrand Brasil

Páginas: 336

 

 

 

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O Homem Perfeito

Resenha Crítica | O Homem Perfeito (2018)

O Homem Perfeito, de Marcus Baldini

Com o avanço do feminismo, o homem está reaprendendo a desempenhar o seu papel em inúmeros contextos, com isso se desnudando de velhos vícios principalmente na abordagem com as mulheres, seja do mero flerte até dentro da estabilidade de um relacionamento. Ao batizar a sua obra como “O Homem Perfeito”, Marcus Baldini já antecipa que ambos os gêneros deverão refletir sobre essa questão em meio aos risos que promove.

Afastada do cinema há quase quatro anos, Luana Piovani encontra no papel de Diana Prado a sua primeira chance em um modelo de protagonista em que todos os dilemas e contradições estão nela centralizados. É ela quem pavimenta os desdobramentos da história a partir de uma ação bem planejada e questionável.

Trata-se o de criar uma identidade virtual daquilo que compreende como um homem perfeito. Diana o faz com toda a criatividade de uma ghost writer e a intenção é perturbar o relacionamento assumido pelo seu ex-marido Rodrigo (Marco Luque) com a bailarina de 23 anos Mel (Juliana Paiva). Explica-se: inconformada com a felicidade alheia, Diana quer testar se Rodrigo é mesmo um homem de qualidades iludindo Mel com um perfil no Facebook de um homem bem-sucedido em todos os quesitos, do profissional ao estético.

Mesmo sem a assinatura no roteiro, Baldini assume “O Casamento do Meu Melhor Amigo” como a sua principal influência, pois aqui também lida com uma mulher que tarda a se reconhecer como a vilã da história. O diferencial é trazer essa premissa para o tempo moderno no qual vivemos, em que o comportamento humano foi modificado com o advento de vidas virtuais diferentes daquela que sustentamos na realidade.

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Coletiva de imprensa de “O Homem Ideal” com a presença de Luana Piovani

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Luana é uma ótima atriz e dá conta com muita facilidade da complexidade de Diana, que vai recebendo novas camadas especialmente pelo modo como enfrenta Caique (Sergio Guizé), um músico presunçoso e o cliente que a contrata para escrever a sua autobiografia. Mas a graça mesmo está contida justamente nas trocas de mensagens instantâneas entre o fake criado por Diana e Mel, encenadas de modo bem crível e visualmente interativo por Baldini.

Uma pena que a questão que levanta sobre comportamentos emperra “O Homem Perfeito” nos quesitos morais. Mesmo que Diana se manifeste duas ou três vezes diante de contextos machistas, o texto se desdobra justamente para esse fim quando as consequências começam a se desenhar. O comportamento da personagem de Juliana Paiva ao clímax é, por sinal, um dos mais vergonhosos já vistos na comédia romântica recente.

10 Segundos Para Vencer

Resenha Crítica | 10 Segundos Para Vencer (2018)

10 Segundos Para Vencer, de José Alvarenga Jr.

Desde que debutou no cinema em 1988 com a direção de “Os Heróis Trapalhões: Uma Aventura na Selva”, José Alvarenga Jr. tem sido um dos nomes mais importantes do país a fortalecer a comédia como gênero a atrair multidões à tela grande. Fez o mesmo com aqueles que preferem a televisão, como comprovam os marcos globais “Os Normais”, “Sai de Baixo” e “A Diarista”.

Ao contrário de alguns nomes mais contemporâneos, nunca foi um mero realizador de aluguel, injetando autenticidade em textos que versavam sobre casamento, abismos sociais, funcionalismo público, crise da meia idade e tantos outros temas identificáveis para qualquer público. Portanto, não causa estranheza a sua associação em “10 Segundos para Vencer”, o primeiro drama de sua filmografia.

A partir de um roteiro elaborado por Thomas Stavros e Patrícia Andrade, a cinebiografia acompanha a trajetória do pugilista Éder Jofre, nome conhecidíssimo por nossos pais e avós, mas um tanto misterioso para as gerações mais recentes. Apelidado de Galinho de Ouro, é reconhecido como um dos maiores atletas dos ringues, inclusive em esfera internacional.

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Entrevista com Daniel de Oliveira e Osmar Prado sobre “10 Segundos Para Vencer”

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Atualmente com 41 anos, Daniel de Oliveira tem inúmeros desafios físicos aqui, da preparação para obtenção de massa muscular até o uso de sua jovem aparência para convencer na fase em que Éder sequer tinha 30 anos. No entanto, o seu protagonismo por vezes é cedido aqui para o grande Osmar Prado, que interpreta o seu pai, Kid Jofre.

Isso significa tudo para “10 Segundos para Vencer”, pois as convenções dos filmes de luta não moldam todo o roteiro. Assim, muito mais do que a trajetória de superação de Éder, temos aqui uma narrativa interessada na perspectiva de um pai que supervisiona os passos do próprio filho, antes avesso ao ofício que o notabilizou devido a vocação como desenhista arquitetônico.

Pode ser considerada uma visão pouco lisonjeira de quem se busca fazer tributo. Mas “10 Segundos para Vencer” não quer mexer em vespeiro e, por isso mesmo, acaba resultando esquecível (quando não enfadonho) pela adoção da estrutura episódica. Eventos dramáticos, como o casamento de Éder, a saúde frágil do irmão e a sua aposentadoria precoce, ocupam a tela sem qualquer ressonância. Alvarenga Jr. entende do riscado, contemplando o público com evidente apuro técnico e boa direção de atores, mas a sua cinebiografia se perde entre as demais produzidas em nosso cinema.

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Entrevista com o diretor José Alvarenga Jr. e o ator Ricardo Gelli sobre “10 Segundos Para Vencer”

Coração de Cowboy

Resenha Crítica | Coração de Cowboy (2018)

Coração de Cowboy, de Gui Pereira

Gênero musical há um século presente em nossa cultura, o sertanejo atravessou eras e hoje é reformulado por jovens talentos que compõem a sua extensão universitária. A pegada é um pouco diferente daquela que aprendemos a admirar por influência das gerações de nossos pais, pois nomes como Gusttavo Lima, Luan Santana e Lucas Lucco soam mais como popstars que se articulam desapegados das duplas do sertanejo romântico de outrora.

Personagem central de “Coração de Cowboy”, Lucca (interpretado por Gabriel Sater, filho do compositor mato-grossense Almir Sater) é um sintoma dessa nova geração. A questão é que ele não é necessariamente um mero produto, mas sim um rapaz com dilemas ao seguir uma trajetória artística pouco condizente com as suas raízes.

Traumatizado por uma fatalidade familiar em que esteve diretamente ligado e com o desejo de se reconectar com o pai (Jackson Antunes, sempre excelente), Lucca abandona a sua agenda de shows e a gravação de um novo álbum para regressar a sua cidade natal no interior. A pausa é para rever a própria identidade, mas o contato com gente do passado, bem como Paula (Thaila Ayala), a nova gerente do bar em que se apresentava na infância com o seu irmão e Marcelle (Thaís Pacholek), só o deixa mais desnorteado.

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+ Entrevista com Thaila Ayala sobre “Coração de Cowboy”

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Paulistano com mais de uma dezena de créditos na direção de curtas-metragens, o paulistano Gui Pereira debuta no formato de longa-metragem em um filme de médio porte com apelo para conquistar espectadores que talvez não se reconheçam como um público-alvo. A leitura de um tom crítico quanto ao estado da música é possível, mas o direcionamento para a crise de identidade está mais sintonizada com os descompassos emocionais de Lucca do que necessariamente os artísticos.

Também surpreende como “Coração de Cowboy” vai aos poucos ganhando a nossa empatia. De versão adulta de um plot à lá “Gaby Estrella: O Filme” (a saída do urbano para o interior, a perseguição da agente inescrupulosa interpretada por Françoise Forton, a saúde fragilizada de um personagem chave), vai cedendo espaço para algo mais substancial e com o selo de aprovação de gente que entende do riscado, da participação de Lucas Lima na trilha sonora até as aparições de artistas como Chitãozinho & Xororó, Maurício Manieri e Rio Negro e Solimões.

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+ Entrevista com a atriz Thaís Pacholek e o diretor Gui Pereira
+ Entrevista com Guile Branco e Gabriel Sater

Benzinho

Resenha Crítica | Benzinho (2018)

Benzinho, de Gustavo Pizzi

Desde a sua retomada, o que não tem faltado no cinema brasileiro é o registro de histórias sobre gente como a gente, cujos conflitos surgem na sobrevivência do dia a dia. Nenhuma novidade, principalmente em uma cultura em que as telenovelas atingem as massas com maior eficácia.

No entanto, é um movimento recente dessas narrativas encenadas sem filtros, com intérpretes desprendidos de qualquer glamour ocupando espaços periféricos, estes finalmente exibidos além do eixo Rio-São Paulo. E que maravilhosa notícia que seja justamente a face de Karine Teles o centro de todas essas questões em “Benzinho”, o que de melhor o Brasil ofereceu no último ano para tentar concorrer a uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – a comissão da Academia Brasileira de Cinema optou pelo malfadado “O Grande Circo Místico”.

Se em “Que Horas Ela Volta?” a atriz carioca era a personagem que servia de reflexo pouco lisonjeiro da fatia mais abastada da sociedade brasileira, ela é em “Benzinho” o lado oposto, o invisível e invisibilizado da mulher que mata um leão por dia para ao fim ter o seu lugar ao Sol. Trata-se de Irene, esposa, mãe, dona de casa, empregada em serviços informais, estudante, sonhadora.

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Entrevista com Karine Teles e Gustavo Pizzi sobre “Benzinho”:

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O recorte que Teles e o seu ex-marido Gustavo Pizzi fazem de Irene é aquele em que o filho mais velho, Fernando (Konstantinos Sarris), recebe a oportunidade de ir para a Alemanha depois de se destacar no time de handebol no colégio. É um convite aceitado e que precisa ser correspondido em poucas semanas, confundindo os instintos maternos de Irene, que compreende a importância do sucesso de sua cria ao mesmo tempo em que não quer se desapegar dela.

Há outros conflitos para nebular a despedida de Fernando: o fracasso do pequeno negócio do marido Klaus (Otávio Müller), a necessidade da venda da hospedagem na praia para driblar as despesas, a arquitetura de uma nova casa enquanto a que é habitada vai ruindo, o amadurecimento precoce dos outros três filhos que precisam reconhecer a ausência de uma mãe que procura por um trabalho fixo em tempo integral, a formatura tardia, a proteção da irmã Sônia (Adriana Esteves, hoje uma de nossas atrizes mais extraordinárias) que é agredida pelo marido Alan (César Troncoso) e tantos outros impasses diários.

Escolhas repetitivas da montagem de Lívia Serpa (como as quebras estabelecidas com as intervenções dos fragmentos de Irene e Fernando abraçados em uma boia) e a falta de maior convencimento no aspecto da construção de um novo lar (de onde vem o dinheiro se ele não sobra?) não minimizam as demais virtudes de “Benzinho”, sendo a maior a de encontrar a catarse no mapa de sentimentos que se constitui o rosto de Karine Teles ao fim.

Camocim

Resenha Crítica | Camocim (2017)

Camocim, de Quentin Delaroche

Se o período de eleições pavimenta por semanas as grandes metrópoles do Brasil com os seus candidatos promovendo passeatas, adesivaços e distribuições de santinhos, nos pequenos municípios a coisa toma proporção de blocos de carnaval. É exatamente esse clima de festa que impera no registro de Quentin Delaroche em seu “Camocim’.

Cidadezinha do Pernambuco com um pouco mais de 18 mil habitantes, Camocim de São Félix se viu bem agitada em 2016. Na multidão, Delaroche identificou Mayara Gomes, uma jovem de 23 anos que abraçou a função de cabo eleitoral do vereador e amigo César Lucena, do PMDB.

Pertence à ela o protagonismo do documentário, com uma câmera que acompanha a sua peregrinação em um contexto político em que predominam a ação da oposição, os cultos religiosos intensificados e uma mobilização juvenil ainda não contaminada com as regras do jogo eleitoral. Mayara vem como uma figura persistente, afastada dos discursos conservadores de onde habita e convicta de que pode reverter as falcatruas da velha política, como a compra de voto.

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Entrevista com Mayara Gomes e Quentin Delaroche sobre “Camocim”:

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Trata-se de um documentário que chega em boa hora, um pouco superior diante do movimento empenhado em conceber híbridos (com a manifestação da ficção quando o verídico não oferta o impacto que realizadores pouco honestos ambicionam) e com uma estratégia de lançamento a preço popular e a inclusão de debates (é o filme de setembro da Sessão Vitrine Petrobras) que pode atingir um público além do restrito.

Falta somente um olhar mais incisivo e menos contemplativo dessa realidade de “Camocim”, algo que o realizador francês consegue com sucesso somente no encaminhamento para o encerramento de sua obra, quando a polarização é ilustrada com uma perfeita simetria entre azuis e vermelhos. “Gretchen Filme Estrada” é uma obra relacionada superior, por exemplo.

Ferrugem

Resenha Crítica | Ferrugem (2018)

Ferrugem, de Aly Muritiba

O cineasta Aly Muritiba é extremamente curioso em avaliar as consequências do registro de uma intimidade a partir de dispositivos tecnológicos, transformados em verdadeiras armas para a destruição de reputações. Lembra muito o início de carreira do canadense Atom Egoyan, em que o fenômeno dos vídeos caseiros existente graças às câmeras portáteis e videocassetes revelava também uma sordidez entre quatro paredes.

Se em “Para Minha Amada Morta” o protagonista interpretado por Fernando Alves Pinto despertava em si um instinto de vingança ao descobrir uma VHS que continha a traição cometida por sua falecida esposa, em “Ferrugem” temos novamente uma gravação sexual como pontapé para o desenvolvimento de uma narrativa. Aqui, no entanto, a consequência é coletiva e, por isso mesmo, mais perigosa.

Tati (Tifanny Dopke) é uma adolescente que está investindo em um colega de sala, Renet (Giovanni de Lorenzi), depois de um rompimento com o namorado. Em uma noite com os amigos, ela perde o seu celular e, no dia seguinte, tem o vídeo da transa com o ex vazado. Primeiro, vem a hostilização na escola. Depois, a certeza de que não há como desfazer a coisa quando o arquivo é publicado em sites pornográficos.

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+ Entrevista com Aly Muritiba, diretor e corroteirista de “Ferrugem”:

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Escrito em parceria com Jessica Candal, Aly Muritiba faz um filme dividido em duas partes. A primeira é excepcional e sem concessões, exibindo com perícia um universo adolescente sem filtros e no qual os adultos são presenças inconstantes. Lamentavelmente, as qualidades são se fazem presente na segunda.

Excetuando Raquel, a mãe de Renet interpretada por Clarissa Kiste que representa a culpa que mulheres carregam quando são vítimas ou quando assumem escolhas radicais, nada há de bom nesse momento de “Ferrugem”, concentrando o peso do que aconteceu com Tati em Renet, um personagem aborrecido pelo qual vamos progressivamente deixando de nos importar. Se o registro pretensamente intimista dessa “Parte 2” fosse repensada para o contexto mais amplo da “Parte 1”, é certo que “Ferrugem” de fato impactaria com o seu conto moral.

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+ Entrevista com a atriz Clarissa Kiste sobre “Ferrugem”
+ Entrevista com Tifanny Dopke, Giovanni de Lorenzi e Nathalia Garcia sobre “Ferrugem”