Café com Canela

Resenha Crítica | Café com Canela (2017)

Café com Canela, de Ary Rosa e Glenda Nicácio

Celebrado pelos festivais em que foi exibido, “Café com Canela” finalmente chega ao circuito comercial com uma proposta singela e honesta que desafia o monopólio das produções Rio-São Paulo ao qual estamos habituados. Vinda de Salvador, a realização consegue dar destaque para personagens gente como a gente, com duas mulheres negras de diferentes gerações atuando como as principais engrenagens da narrativa.

Violeta (Aline Brune) é a quem recebe mais realce. Jovem muito bem resolvida e com família constituída, ela se reveza entre as tarefas diárias e os cuidados da avó inválida (interpretada por Dona Dalva Damiana de Freita) e tem embutida em si um tipo de generosidade raro hoje em dia, sendo benevolente com aqueles que a cercam sem esperar nada em troca. Isso é comprovado principalmente quando esbarra em Margarida (Valdinéia Soriano), que fora sua professora.

Além de Violeta e Margarida, há Ivan (o versátil Babu Santana, que interpretou a versão mais velha de Tim Maia) para fechar um ciclo de indivíduos que lidam (ou lidarão) com a dor da perda, uma pauta que vai se tornando cada vez mais central em “Café com Canela”. Assim, tanto eles como o público refletirão sobre o vazio permanente deixado por um ente que partiu ou mesmo dessa morte em vida que nos priva do mundo exterior.

Quem assume o comando de “Café com Canela” é a dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. É uma bela estreia, por vezes empenhada em estabelecer rimas visuais realmente criativas. Há desde um split screen que evoca a conexão entre essas figuras quase como uma família desconstruída até a mutação de um cômodo que vai ficando cada vez mais claustrofóbico para Valdinéia.

Mesmo com a abordagem densa, Ary e Glenda não pesam a mão nos eventos trágicos, preferindo priorizar o processo paulatino de recuperação de algo que não necessariamente se supera, mas que vai se tornando tolerável quando uma perspectiva mais positiva sobre a existência vai florescendo internamente nos personagens. Uma leveza bem-vinda e que não se furta de deixar uma forte impressão.

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+ Entrevista com Ary Rosa, codiretor e roteirista de “Café com Canela”

Ana e Vitória

Resenha Crítica | Ana e Vitória (2018)

Ana e Vitória, de Matheus Souza

As amigas Ana Caetano e Vitória Falcão formam aquele raro modelo de união entre talento e sorte que reverberou em sucesso. Além de se distanciarem do protótipo de jovens artistas moldadas por empresários gananciosos, a dupla de Araguaína traçou uma vida universitária sem ligação com o universo musical, com Ana cursando medicina e Vitória, direito.

Foram descobertas por Felipe Simas através de vídeos descompromissados em que cantavam sucessos de grandes amigos. Quatro anos após a produção de um EP, o agora duo Anavitória separa seu nome para recontar, com muitas intervenções ficcionais, um pouco dessa trajetória em três capítulos.

O brasiliense Matheus Souza é muito interessado na juventude, como demonstrou em “Apenas o Fim” e “Eu Não Faço a Menor Ideia do Que Eu Tô Fazendo Com a Minha Vida”, sendo abordado para tocar a história de Anavitória. Faz o que entrega o pôster: uma comédia romântica musical sobre relacionamentos modernos.

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+ Entrevista com Ana Caetano e Vitória Falcão sobre o filme “Ana e Vitoria”

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Conta pontos o fato de “Ana e Vitória” ser uma produção independente, desviando daquela coisa com cara televisiva parecida com o que vimos no início do ano com “Gaby Estrella: O Filme“. Deixar as meninas mais a vontade para serem quem são ao invés de exigirem que interpretem versões de si mesmas também contribui para maior empatia.

Há ainda um interesse por um ponto de partida que descarta as convenções da cinebiografia com maior interesse em compreender a dinâmica que dita hoje os amores e desilusões entre os jovens. No contexto contemporâneo de Ana e Vitória (e nosso), a rotulação da sexualidade não importa e os relacionamentos abertos não parecem ser a resposta ideal contra os monogâmicos.

Faltou um acabamento mais consistente. A música é secundária em “Ana e Vitória” e vai se tornando cada vez mais deslocada com o progresso da narrativa. A primeira parte, focada no reencontro entre as amigas depois do ensino fundamental em uma festa no Rio de Janeiro, poderia ter uma fotografia mais cuidada.

Por fim, a longa duração de duas horas pouco faz para o desenvolvimento dos personagens secundários, em sua maioria caricatos. É difícil tolerar, por exemplo, Cecília (Clarissa Müller), que faz exigências egoístas mesmo na noite em que a sua namorada Ana está para mudar de vida. Conhecido também por sua cobertura em cinema, Bryan Ruffo vem como uma exceção ao interpretar o melhor amigo de Vitória, em exposição franca das fragilidades masculinas.

Resenha Crítica | A Moça do Calendário (2017)

A Moça do Calendário, de Helena Ignez

.:: 41ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Helena Ignez de fato se ocupou da responsabilidade de preservar o legado de seu marido Rogério Sganzerla, o maior cineasta do dito cinema de invenção. Não somente fez uma sequência tardia para “O Bandido da Luz Vermelha” em 2010 com “Luz nas Trevas: A Volta do Bandido da Luz Vermelha”, como seguiu preservando os seus ideais em “Ralé”.

“A Moça do Calendário” segue reverenciando Sganzerla, com um roteiro cujo argumento foi originalmente concebido por ele, mas a voz de Ignez ressoa mais forte aqui. Há até certo empoderamento em suas personagens femininas, que aqui não são apenas fetichizadas, como a personagem-título vivida pela filha de Ignez e Sganzerla, Djin.

Inácio (interpretado pelo carismático André Guerreiro Lopes) vive com um pé fora da realidade enquanto se conforma com a profissão de mecânico enquanto insiste no desejo de uma carreira artística, mesmo ciente de que a idade talvez tenha passado para persegui-lo. Ou mesmo a crise de emprego que atualmente assola o país.

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Com um pé no humor, Ignez ainda conduz uma trama simples que respira liberdade principalmente por seu encanto pelos pontos mais periféricos de São Paulo, livrando “A Moça do Calendário” da claustrofobia dos cenários e locações que costuma artificializar a nossa cinematografia. A isso, também se integra a bela fotografia de Tiago Pastoreli e a uma possibilidade de encontrar alguma perspectiva positiva mesmo diante dos fracassos em que Inácio tropeçará inúmeras vezes.