Resenha Crítica | A Chegada (2016)

Arrival, de Denis Villeneuve 

Desde o início de sua carreira, o canadense Denis Villeneuve já mostrava um interesse prioritário em contar histórias sem qualquer margem para pontas soltas. Foi algo que se viu em “Redemoinho”, no qual a protagonista vivida por Marie-Josée Croze acaba firmando um relacionamento com o filho de um desconhecido que atropelou sem prestar socorro. Essa marca particular também é reconhecida em “Incêndios”, que resgata a jornada de uma mulher no Oriente Médio e as ligações perigosas tecidas pelo destino.

Atar todos os nós em uma ficção científica provoca um resultado totalmente distinto daquele quando se está em outros terrenos ditados por um mistério. É preciso muito cuidado ao apresentar ao público uma realidade paralela, especialmente ao introduzir elementos fantásticos sem que o método seja meramente didático. Mais: os desdobramentos de uma trama mirabolante jamais devem negligenciar o fator humano. Os dois perigos são apenas alguns dos inúmeros em que Villeneuve pisoteia no curso de “A Chegada” sem saber que está em um campo minado.

Linguista, Louise Banks (Amy Adams), é convocada pessoalmente pelo Coronel Weber (Forest Whitaker) para decifrar a língua de alienígenas que aterrissaram em vários pontos da Terra. Rejeitando a princípio a oferta por cederem acesso somente a uma gravação, Louise recebe a oportunidade de estabelecer contato diretamente com as criaturas em Nevada, contando ainda com o suporte de Ian Donnelly (Jeremy Renner) nesta missão.

Dentro de um gênero responsável por carregar multidões ao cinema principalmente pelo sentido de espetáculo embutido em uma estética construída a partir de efeitos visuais, “A Chegada” apresenta uma proposta inesperada, a princípio podendo quebrar as expectativas de muitos. A adrenalina inexiste no texto assinado por Eric Heisserer, privilegiando uma heroína incomum durante a árdua tarefa de identificar um discurso que se dá em formas circulares emitidas por uma nuvem acinzentada expelida pelos tentáculos dos alienígenas.

A consequência é um filme insípido em sua (falta de) imaginação visual, indo do design das criaturas até a arquitetura do espaço – nunca se viu “naves espaciais” tão ausentes de magnitude. Nenhum problema em propor uma experiência mais cerebral, mas “A Chegada” pouco faz com um aspecto que é favorecido no desdobramento de sua narrativa: o quão estrangeiros somos em um planeta com distinções traçadas a partir de nossa incapacidade de diálogo.

A escolha em conferir uma arma (ou melhor, presente) à Louise vem a ser o estopim para resoluções nada climáticas, podendo causar risos involuntários especialmente um contato com o líder de uma potência. Para piorar, o ato final é marcado por outra predileção de Villeneuve, desta vez ressoando falha: a surpresa para selar todo um arco dramático. Surpresa essa que quase soa como uma prenda tola que tenta ressignificar o histórico emocional de uma protagonista com poucos atrativos ao seu redor para fortalecê-la. Talvez seja melhor Villeneuve repensar a decisão de servir à fantasia com exclusividade.

Resenha Crítica | O Apartamento (2016)

Forushande, de Asghar Farhadi

.:: 40ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

O diretor e roteirista Asghar Farhadi talvez seja atualmente o maior expoente do cinema iraniano a provar mundialmente que os filmes produzidos em seu país estão muito longe de serem tediosos e de vocabulário restrito. Ao contrário. Sem abrir mão das tradições culturais que cercam a sua realidade, Farhadi ainda assim exibe a ânsia de uma juventude e a quebra de paradigmas dos adultos.

Justamente por considerarmos todos esses fatores, “O Apartamento” soa um tanto discreto dentro do recorte mais recente e vibrante de sua filmografia, ainda que o ponto de virada do roteiro premiado em Cannes seja extremamente espinhoso de ser discutido pelos iranianos. Trata-se da condição da mulher em uma situação de abuso, geralmente privilegiando o silêncio em nome da honra.

Além de professor, Emad (Shahab Hosseini) também lidera um coletivo teatral, atualmente encenando “A Morte do Caixeiro Viajante”, a mais notória peça da autoria de Arthur Miller. Com Rana (Taraneh Alidoosti), Emad compartilha não somente o palco, como a vida privada em um apartamento em que acabaram de se mudar após o endereço em que viviam anteriormente ser ameaçado de desabamento.

A transferência de moradia resulta em uma situação em que Rana se transforma em vítima de um ataque, sendo gravemente ferida por um estranho enquanto se banha. Ao conhecer a verdadeira natureza da agressão, Emad passa a ser corroído por um sentimento de vingança enquanto Rena prefere deixar as coisas como estão para se preservar.

Com tantos filmes de outras nacionalidades tendo uma premissa similar, a exemplo de “Paulina”, “Elle” e especialmente “O Silêncio do Céu”, esperava-se que “O Apartamento” fosse mais incisivo em sua observação sobre os comportamentos que permeiam o íntimo das mulheres ao serem violadas. Em um ângulo geral, a produção não contribui muito para o debate e, fora dele, não representa um passo adiante para Farhadi, então superando a si mesmo a cada nova obra.

Por um lado, “O Apartamento” descarta as estruturas convencionais de um mistério já deixando todas as pistas expostas para ir ao encontro do agressor. Por outro, uma predileção pela perspectiva masculina do contexto é mais perceptível, reservando em poucas ocasiões a condição de Rana em um cenário em que a mulher é secundária mesmo em situações em que seus anseios deveriam ser priorizados. Uma escolha que converge em um estrondo final sem todas as rachaduras pretendidas.

Resenha Crítica | Animais Noturnos (2016)

Nocturnal Animals, de Tom Ford

.:: 40ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Um dos maiores estilitas do mundo e salvador da Gucci, Tom Ford esteve envolto a questionamentos alheios quanto a sua decisão de transferir o seu lado artístico expresso no universo da alta-costura para o cinema. Toda a sofisticação e a atenção preciosa aos detalhes que o notabilizaram como uma marca fashion foram impressas em seu debutDireito de Amar“, mas a surpresa que poucos esperavam foi o toque sentimental trazido para a sua adaptação do romance “Um Homem Só”, de Christopher Isherwood.

Sete anos depois, Tom Ford volta com um novo filme, que vem a ser também uma tentativa de enriquecer um material original que não é lá tão formidável. No caso de “Animais Noturnos”, houve como base o último romance do também professor e crítico literário Austin Wright, “Tony & Susan”, publicado no Brasil pela editora Intrínseca. Entretanto, o êxito anterior está longe de se repetir aqui.

Excelente atriz que geralmente vive papéis que não têm a vaidade como  um item prioritário, Amy Adams não está em um grande momento como Susan Morrow, personagem que seguiu uma carreira artística sem necessariamente estar satisfeita com o que produz. Trata-se de uma pessoa que tem tudo ao seu redor, mas que julga que fracassou na vida.

Esse sentimento começa a se justificar quando recebe o manuscrito para avaliação de “Animais Noturnos”, o último romance escrito pelo seu ex-marido Edward Sheffield (Jake Gyllenhaal). Enquanto Susan faz a leitura, a obra literária recebe uma linha narrativa para si mesma. Em sua trama, Tony Hastings (também vivido por Jake Gyllenhaal) está viajando com a sua esposa Laura (Isla Fisher) e a filha India (Ellie Bamber). sendo perseguidos por um trio de marginais com péssimas intenções.

Ainda que “Animais Noturnos” não contenha nenhum traço autobiográfico e o seu tom de thriller em nada compete com a história de Susan com Edward, nota-se que alguma coisa em sua brutalidade seja um reflexo de um rompimento que talvez não tenha sido dos mais harmoniosos. Para compreendê-lo, flashbacks são alternados com o presente de Susan e o presente ficcional de Tony.

O maior atrativo de “Tony & Susan” foi o recurso de Austin Wright em fazer um livro dentro do livro. Não se trata de uma inovação, mas funciona por trazer uma personagem íntima das intenções de seu autor geralmente reagindo do mesmo modo que o leitor a partir das resoluções brutais e de certa passividade de Tony diante da violência. Como “filme dentro do livro”, esse diferencial não se encaixa adequadamente. Ao contrário, soa por vezes patético.

Na literatura, é mais do que obrigatório trazer ao leitor diante de um impacto ou surpresa um respiro em forma de um novo capítulo, um subterfúgio que nos faz repensar a decisão de seguir ou interromper com a leitura. O modo como Tom Ford tenta traduzir isso no campo audiovisual é risível, chegando ao cúmulo de fazer com que Susan seja forçada a pausar a sua apreciação no instante em que mais se exige a sua atenção – há até mesmo um pássaro batendo aleatoriamente contra a porta de vidro de sua luxosa residência para causar essa quebra.

Ainda assim, o mais grave de tudo é como as duas histórias de “Animais Noturnos” se anulam ao invés de se completarem. Há uma predileção por uma beleza macabra como tentativa de radiografar os protagonistas, intenção já explicitada em um prólogo de idosas obesas e nuas com adereços de integrantes de bandas marciais. Uma escolha com preocupações estéticas que sufoca justamente os fragmentos de uma realidade amarga em sincronização com a monstruosidade da ficção. Um exemplar com a rara capacidade de decepcionar não somente uma, mas duas vezes.

Resenha Crítica | A Criada (2016)

Ah-ga-ssi, de Park Chan-wook

.:: 40ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Cineasta com uma assinatura visual já consolidada e reconhecida, Park Chan-wook é também um roteirista exemplar na arte de manipular o público, direcionando-o por vezes a territórios que os despistam quanto a grande história que está se costurando. Se em seu penúltimo filme, “Segredos de Sangue”, as influências hitchcockianas renderam um belo e perturbador registro sobre o surgimento da psicopatia, com “A Criada” Chan-wook regressa à Coreia do Sul levando de sua estada ocidental um romance da britânica Sarah Waters para fazer o seu “Azul é a Cor Mais Quente”.

Claro que a associação com o filme de Abdellatif Kechiche, que também disputou a Palma de Ouro em Cannes, ressoa somente na voltagem erótica. Já levado para a tevê em formato de minissérie com Elaine Cassidy, Sally Hawkins e Imelda Staunton no elenco, “Fingersmith” é revirado por Chan-wook, cercando de perversão a premissa falsamente folhetinesca de uma jovem, Sook-hee (Kim Tae-ri), persuadida pelo Conde Fujiwara (Ha Jung-woo) a ser a criada de Lady Hideko (Kim Min-hee), com quem pretende se casar e herdar toda a sua fortuna.

Ao preparar o terreno para Fujiwara agir, Sook-hee se vê simpatizando com Lady Hideko, principalmente ao investigar o poder que o tio Kouzuki (Cho Jin-woong) exerce sobre a sua vida. Mesmo de origens distintas e exercendo papéis sociais opostos, uma atração mútua se manifesta a partir de pequenas ações físicas que desencadeiam o desejo sexual de ambas. Como o tenso auxílio que Sook-hee presta ao readequar um dente de Lady Hideko que a incomoda enquanto chupa um pirulito – mais sugestivo, impossível!

Como bem provou na trilogia Vingança, Park Chan-wook se diverte trabalhando com aparências, fazendo que o espectador descarte todo um raciocínio construído após uma boa demanda de tempo. Não é diferente em “A Criada”, tirando da manga uma surpresa que fará tudo recomeçar praticamente do zero. Ou melhor: ofertará o privilégio de perseguir um novo ponto de vista dando um sentido muito mais amplo de todo o contexto.

De todos os cineastas contemporâneos atraídos por narrativas não lineares, o sul-coreano é o que melhor as domina, usando o flashback não como uma ferramenta para mastigar os dados que devem preencher as lacunas sobre os históricos de personagens, mas como o passado destes é essencial para redimensioná-los. Isso se aplica principalmente à Lady Hideko, ocultando um meio de vida tão doentio que o melhor a fazer é deixar o espaço para a imaginação.

Acima de todo esse jogo entre criaturas dissimuladas, é incrível como “A Criada” ainda assim consegue ser tão verdadeiro no amor atípico que encena. Encontrar o fator humano em um freak show é um desafio superado porque nenhuma violência é mais intensa e explícita do que o choque entre dois corpos que se desejam. Sem ninguém esperar, Park Chan-wook entrega o romance mais arrebatador dos últimos tempos.

Resenha Crítica | Elle (2016)


Elle, de Paul Verhoeven

:: 40ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo ::.

Desde o início de sua carreira, o holandês Paul Verhoeven provou que não havia meias palavras quando o seu assunto era sexo. Produzidos nos anos 1970, “Negócio é Negócio” e “Louca Paixão” foram os primeiros indícios da visão despudorada do realizador sobre o tema, atingindo o seu ápice em 1992 ao chocar o mundo com “Instinto Selvagem”. É essa credencial que faz de Verhoeven um nome perfeito para a direção de “Elle”, cuja premissa não facilita nem um pouco o julgamento da plateia diante do que testemunha.

Adaptação do romance “Oh…”, de Philippe Djian, “Elle” abre somente com os sons de confronto sexual. Segundos depois, nos deparamos com o corpo estirado e violado de Michèle Leblanc (Isabelle Huppert) em sua própria casa. Sem esboçar qualquer horror ao que acabou de atingi-la, simplesmente limpa as taças e louças que foram quebradas durante o ataque, descarta a sua roupa na lixeira e se banha reagindo somente ao sangue que se mistura com a espuma da banheira.

Em um jantar, confidencia ao ex-marido Richard (Charles Berling) e aos amigos Anna (Anne Consigny) e Robert (Christian Berkel) o estupro com a mesma naturalidade que se fala com um estranho na rua sobre uma mudança climática. Diz que não comunicará o crime à polícia e segue naturalmente a sua rotina profissional como chefe de uma empresa de desenvolvimento de games.

A excentricidade da personagem, confirmada em seu silêncio e em outras posturas injustificáveis (como a de destruir o para-choque de Richard antes de encontrá-lo e o de se relacionar com o marido de sua melhor amiga), sugere que Verhoeven, a partir do texto de David Birke (“Os 13 Pecados”), não está interessado em fazer um manifesto sobre a violência contra a mulher, uma abordagem que muitos visualizam mais pelo potencial comercial em tempos de empoderamento e menos por sua força discursiva. Michèle é uma pessoa tão ou mais perigosa que o seu assediador.

A partir de um background fantástico, a protagonista vai saindo da posição de mera vítima. Fatos passados e presentes modelam uma mulher nem um pouco preocupada em externar os seus julgamentos cruéis, o que a faz ganhar desafetos não somente no trabalho, como em seu núcleo familiar. Também é curioso perceber a sua incapacidade de se desvincular das ações criminosas de seu pai, autor de uma barbaridade que o fez pegar prisão perpétua.  Não há dúvidas de que Michèle quer vingança, porém, há algo nesse desejo que pode desencadear nela uma maldade reprimida que quase anula o que ainda resta de nossa empatia por sua condição.

Com tudo isso, Verhoeven não se vê no compromisso de fazer um filme politicamente correto. Ao contrário, pois há tanto humor ditando as interações de Michèle com os demais personagens que o resultado chega a desconcertar. O que não significa que não estejamos respondendo com algum fascínio pelo curso da história, ainda que o terceiro ato amorteça consideravelmente toda a tensão arquitetada por uma obra então desprendida de zonas de conforto.

Resenha Crítica | Deadpool (2016)

Deadpool

Deadpool, de Tim Miller

Quando foi divulgada a primeira imagem oficial de “Deadpool”, na qual Ryan Reynolds é visto deitado próximo a uma lareira caracterizado como o personagem, era evidente que a Marvel e a Fox iriam conferir um tratamento pouco convencional para o projeto. Também pudera, pois Deadpool foi visto previamente em “X-Men Origens: Wolverine”, um fiasco com o poder de eliminar uma nova chance de aparição em qualquer outro filme.

Optou-se assim pelo escracho, trazendo aquela que foi a campanha promocional mais eficiente vista em Hollywood em tempos recentes, onde produções concorrentes e do próprio universo dos quadrinhos foram satirizadas tendo como protagonista um sujeito com uma fantasia vermelha em couro. Essa inconsequência de encarar tudo ao redor como uma brincadeira é também o que dita os rumos de “Deadpool” como filme, o primeiro assinado por Tim Miller, indicado ao Oscar em 2005 pela animação em curta-metragem “Gopher Broke”.

Definitivamente, não há freios em “Deadpool”. A violência atinge níveis gráficos, com membros decepados e corpos esmagados. Há nudez quase frontal. O linguajar é totalmente inapropriado. Ofensas são disparadas para todas as direções. Trata-se de uma celebração ao politicamente incorreto somente relevada pelos censores (a classificação é 16 anos) pelo apreço à fantasia, ainda que “Deadpool” respeite o perfil de seu herói/vilão ao ponto de quebrar essa ilusão em inúmeras passagens.

Dentro de tudo isso, “Deadpool” tem lá os seus valores, ainda que tortos. O principal é o compromisso de todo o elenco com essa brincadeira bizarra, especialmente Ryan Reynolds, que não tem pudor algum de usar a si mesmo como um dos principais alvos das tiradas presentes no roteiro de Paul Wernick e Rhett Reese. Outro ponto de interesse é como essa barreira que distancia o bem do mal inexiste no universo de Deadpool, inclusive quando este ainda é Wade, um jovem de trajetória errante que põe a sua vida em perspectiva ao se apaixonar pela prostituta Vanessa (a brasileira Morena Baccarin) e, posteriormente, descobrir que contraiu um câncer raro e incurável. A presença da veterana Leslie Uggams (do seriado “Roots”) como uma “parceira” cega de Deadpool é também brilhante.

O perigo do escapismo que é “Deadpool”, muito bem abraçada pelo público que transformou a produção no maior sucesso que já se viu no mês de fevereiro nas bilheterias americanas somente em sua estreia, está em transformar as suas “gracinhas” em tendência. Por melhor que o filme seja com as suas estratégias, há dois incômodos que podem ser notados após a histeria das risadas.

O primeiro vem da constatação de que “Deadpool” se locomove a partir de uma premissa que quase inexiste, estranho para algo que se pretende como história de origem. Em suma, é apenas sobre os receios de Wade em se reapresentar como Deadpool para Vanessa, agora carregando todas as deformações de experimentos que prometiam curar a sua doença e a promessa de se vingar de Francis/Ajax (Ed Skrein), o inimigo que o transformou em monstro.

O segundo senão é quanto o uso de metalinguagem e a quebra da quarta parede nos dissocia de “Deadpool” daquilo que se reconhece como uma experiência cinematográfica, mais parecendo uma coletânea de memes com quase duas horas do que uma chance para escapar da realidade ao longo dessa duração. A tiração de sarro com o fracasso de “Lanterna Verde”, com a inconstância da franquia “X-Men” e sacadas que só farão sentido para aqueles que têm o internetês como língua fluente recheia tanto “Deadpool” que chegamos ao ponto de criar a ilusão de que não estamos mais no cinema, mas na barra de rolagem do navegador do celular para se antenar na piada viralizada da vez. Agora é acompanhar se essa exceção do cinema pipoca vai se transformar em regra.

Resenha Crítica | O Lagosta (2015)

The Lobster

The Lobster, de Yorgos Lanthimos

Para “O Lagosta”, o diretor, roteirista e produtor grego Yorgos Lanthimos constrói um cenário paralelo ao nosso, com autoridades invisíveis em que os rumos são ditados por anônimos submissos ao poder estabelecido sem que estes percebam a própria relevância. Popularizada na ficção pelo britânico George Orwell com “1984”, essa premissa é revista com muita originalidade nesta co-produção entre Estados Unidos, França, Grécia, Holanda, Irlanda e Reino Unido.

O que move a sociedade em “O Lagosta” são os relacionamentos. Aqueles que não encontram a chamada alma gêmea ou simplesmente a perderam são classificados como Solitários. Rejeitados, precisam se submeter a um “resort” em que terão somente 45 dias para encontrarem um parceiro. Caso não tenham sucesso no curso desse prazo e não sejam eliminados em um massacre em que os Solitários são os caçadores e as caças, terão como destino a transformação permanente em um animal, cuja escolha partirá de cada um.

Embora Yorgos Lanthimos a todo o momento insira indícios de que os traços fantásticos de sua narrativa possam ser questionados, é nela que David (Colin Farrell) se vê enclausurado.  É preciso encontrar uma parceira que corresponda às características pouco usuais que o integram: a miopia, as dores insuportáveis na coluna e a inabilidade para curá-la com as próprias mãos e o irmão que o acompanha, agora nas formas de um cachorro.

Há dois momentos distintos em “O Lagosta”, o primeiro com a narração pouco apaixonada de Rachel Weisz sobre os passos dados por David e o segundo marcando o encontro desses dois personagens em uma floresta que divide os mundos dos Solitários e dos casais que vivem pacificamente na cidade. Não que a paz esteja estabelecida neste refúgio, uma vez que a liderança dos Solitários, nas formas da francesa Léa Seydoux, pune com rigor aqueles que assumam um relacionamento.

Em distopias, o amor surge como o instrumento de salvação de um planeta que ruma para o fim da humanidade. Em “O Lagosta”, essa máxima é revirada. Estaria o amor realmente presente na repetição das convenções, que padroniza a constituição de uma família como o alcance da felicidade plena? Estamos todos condicionados a compartilhar um lar e a intimidade com aqueles que nos interessam por mera compatibilidade ou por sentimentos que superam as distinções vigentes?

É uma surpresa que uma premissa repleta de tantas estranhezas consiga transcender com questionamentos que não apenas nos dizem respeito, como contaminam o nosso âmago, trazendo ainda uma conclusão desconcertante e desesperançosa que revê as contradições complexas de um ser humano por traz de suas decisões, regidas mais pela necessidade de preenchimento do que por amor. É um alívio que Yorgos Lanthimos não tenha recuado nem um pouco na autoria que imprime em seu cinema ao elevá-lo a um novo patamar em um idioma não materno.